Desde 1977, cinéfilos têm uma oportunidade de ouro durante alguns abençoados dias no final de outubro. Há mais de 35 anos, filmes que jamais chegariam aos circuitos comerciais têm público certo (e às vezes exaltado). Estamos falando do evento que encantou Tarantino, acolheu Kiarostami e foi essencial para o renascimento de Manoel de Oliveira. A Mostra Internacional de Cinema de São Paulo nasceu franzina e atacada de vários lados, mas o amor pela sétima arte fez com que seu criador e pai, Leon Cakoff, não desistisse nunca.
“Se a mostra não existisse, estaríamos todos um pouco mais pobres”.
Era uma jogada interessante, porém arriscada. A exibição de filmes sairia do MASP e ganhariam vida própria em 1977, mas a censura dos anos de chumbo estaria lá para assombrar as primeiras edições da Mostra Internacional de Cinema. É um evento que permanece devido ao otimismo e ao amor pelo cinema. O homem que carregou a mostra nas costas do início até sua morte, em 2011, nos conta em tom de confidência, com um quê de livro de memórias, e as palavras mais perfeitas, os primeiros 30 anos de um dos maiores eventos culturais do Brasil.
“E o cinema era e sempre será o melhor dos termômetros para se medir temperatura das emoções e ver o rumo dos pensamentos, pois também atrai loucos para qualquer enfermaria da imaginação”.
Se os americanos tinham em Roger Ebert o Papa da crítica cinematográfica, nosso porta-voz sobre assuntos da sétima arte deveria ser Leon Cakoff. Sua escrita é fluida e inteligente, nos obrigando a parar de vez em quando para refletirmos – reflexão esta que expande nossos horizontes.
Foi difícil trazer alguns filmes nos tempos de censura, mas nada comparado ao já natural (infelizmente) descaso com a cultura. Fazer a Mostra caminhar com as próprias pernas, independente do MASP, de Bardi e de Chateaubriand, dependia de patrocinadores, e bastava acabar uma edição da Mostra para começar a luta pelo patrocínio para a Mostra seguinte – com direito até a propaganda cinéfila mal interpretada em outdoor.
“A memória do cinema passou a ser democratizada e o seu conhecimento, compartilhado”.
A frase acima se refere ao surgimento e popularização do VHS, pois antes dele os filmes eram exibidos, em cópias de película, apenas na estreia e ficavam esquecidos daí em diante. Quem quisesse rever não podia, a menos que dispusesse de projetor e cópia, caso contrário precisava se contentar com o que guardava na memória. Através primeiro de festivais, mostras e cineclubes, e finalmente através de VHS, DVD, Blu-Ray e streaming o status do cinema mudou: o espectador passou a ter mais escolhas e ressignificar filmes de qualquer época deixou de ser privilégio das elites intelectuais.
“Pode não fazer ver a muitos ao mesmo tempo, mas contribui pra a circulação de ideias”.
Eu já ficaria feliz com uma lista de todos os filmes já exibidos na Mostra, para me servir de guia cultural e desafio a ser cumprido. Não é isso que é o livro, obviamente, mas a riqueza dos títulos citados impressiona: longe do cinema blockbuster, mainstream, a Mostra sempre mostrou (com o perdão do trocadilho) a gente pensante e atuante de vários lugares do mundo. Filmes obscuros e rechaçados em sua terra natal ganharam nova vida e novo público em terras brasileiras.
“O sucesso de público pode ser alcançado sem que se recorra a padrões pautados pela rotina e pela banalização”.
Diz o ditado que uma imagem vale mais que mil palavras. Leon Cakoff nos apresenta os bastidores da Mostra e as qualidades de centenas de filmes exibidos com as mais perfeitas palavras. A sensação de pertencer àquela época e lugar, e de participar daquelas 30 edições contadas é o suficiente para acumular lágrimas nos olhos de qualquer cinéfilo. A paixão de Cakoff pelo cinema, e pelas ideias disseminadas pelo cinema, é muito semelhante à paixão de Scorsese pela sétima arte. O livro é muito rico em palavras e fotos exclusivas para ter sua beleza traduzida em apenas uma resenha. Vá e veja a Mostra. Vá e leia “Cinema sem Fim”.
“O cinema é mesmo o grande depositário de nossas esperanças”.
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