O escritor manauara Ricardo Kaate lança seu mais novo livro “A Lança de Anhangá” (2024, 224 págs.), uma obra que mistura ficção científica, fantasia e horror com a mitologia ancestral da Amazônia. Vencedor do Prêmio Literário Cidade de Manaus, o livro traz à tona entidades mitológicas que se levantam para vingar a destruição ambiental provocada pelo capitalismo predatório. A narrativa propõe uma reflexão sobre o impacto dessas violências na cultura e na sobrevivência dos povos da floresta.
Nascido em Manaus e atualmente residindo em Manacapuru, Ricardo Kaate Lima é doutor em Ciências Sociais pela UNESP e professor no Instituto Federal do Amazonas. Apaixonado pela sua terra, o autor vê a Amazônia como uma fonte inesgotável de histórias e símbolos que influenciam tanto sua vida quanto sua obra. Além de estudos acadêmicos, Kaate dedica-se à literatura desde os 18 anos, utilizando a escrita como forma de combate à depressão.
“A Lança de Anhangá” é uma coleção de contos especulativos onde a floresta amazônica ganha vida como personagem central. Em um cenário que mescla investigação noir com terror fantástico, a obra coloca em debate o confronto entre a modernidade, as tradições indígenas e a própria natureza, que reage contra seus algozes. Leia, abaixo, a entrevista com o escritor e conheça mais sobre o processo de escrita do livro.
Se você pudesse resumir os temas centrais de “A Lança de Anhangá”, quais seriam?
A cultura da região amazônica e dos povos tradicionais diante da devastação ambiental e do autoritarismo de Estado e a ganância das grandes corporações. As consequências da modernidade sobre a região e a cultura amazônica. As Consequências das tecnologias para as sociedades. Corrupção, autoritarismo. Opressão dos mais fracos pelos mais fortes. Autonomia dos povos. Possibilidades de libertação dos povos da amazônia. Possibilidade da Amazônia plasmar sua própria civilização. Horrores que se escondem na floresta escura. Poderes terríveis vindos das trevas exteriores que podem destruir tudo o que somos, cujos segredos e formas de combater apenas os povos tradicionais conhecem. A possibilidade de outros mundos além do nosso e como ações que ocorrem em outros lugares nos confins do pluriverso podem afetar o nosso mundo.
Por que escolher esses temas?
Sobre a Amazônia: são os temas que tenho me deparado no estudo da região desde quando entrei na faculdade. Eu sou, acima de tudo, um amazônida falando sobre a minha região, escrevo sobre o que conheço. Antes de ser brasileiro, sou amazônida. Os outros temas consistem no fato de que eles me seduzem do ponto de vista estético: a possibilidade de outros mundos, civilizações e universos. É uma forma de refletir sobre esse mundo terrível e ao mesmo tempo fugir dele. Criticar as mazelas do mundo, mas também escapar dele. Eis porque misturo tudo que li e pesquisei sobre essa sibéria tropical em vias de desaparecer que é a minha região com o horror cósmico, a dark fantasy, a ficção científica, o solarpunk e o cyberpunk.
O que motivou a escrita do livro e como foi o processo de escrita? Quanto tempo levou para escrever o livro?
Levou nove meses. Muito café, heavy metal, horas mal dormidas, aulas de escrita criativa, pesquisa, leituras, releituras, revisão e cortes das partes ruins. Eu sou um operário da palavra. Não acredito em inspiração.Acredito em transpiração e trabalho duro. A motivação está na necessidade de passar todo esse mundo em volta pela minha subjetividade, com tudo o que já li e pesquisei sobre a Amazônia e pôr para fora em forma de ficção. Só queria ter algo a dizer sobre o mundo à minha volta e contar boas histórias que eu queria ler em outros autores mas não conseguia encontrar.
Em sua análise, quais as principais mensagens que podem ser transmitidas pela obra?
Meu mundo literário é a Amazônia. A mitologia que pretendo expandir e desenvolver está na Amazônia. Escrevo sobre o que conheço, sobretudo. Não faria sentido escrever sobre a Europa medieval ou cidades como Nova York, Paris ou Londres. A América Latina e a Amazônia são uma floresta de símbolos e histórias quase inesgotáveis para a literatura e a arte em geral.
Resolvi aproveitar o rico legado da história e da cultura amazônica para falar dos medos, fobias, monstros e toda sorte de desgraças que podem acontecer conosco. Algumas já estão acontecendo. Os mitos amazônicos são tão assustadores quanto as histórias de Stephen King ou os Deuses Exteriores de H.P. Lovecraft. Isso porque a história regional, como a de toda América Latina, é baseada em traumas, violência e dominação. Os mitos, relatos, folclore, cosmologia e causos, tudo espelha ou é um reflexo da história sangrenta na periferia do capitalismo ocidental.
Concordo com a professora Violeta Loureiro, quando diz que as elites dirigentes tratam a região de forma muito similar como as elites metropolitanas tratavam o Brasil da época da colônia: como um sertão bárbaro que deveria ser explorado a qualquer custo a despeito das consequências humanas e ambientais. Não existe terreno mais fértil para a ficção especulativa do que esse contexto.
O que esse livro representa para você? Você acredita que a escrita do livro te transformou de alguma forma?
Acho que com ele eu ganhei de fato uma confiança na minha escrita que eu não tinha antes. Ao ganhar o prêmio Literário Cidade de Manaus com um livro que não é de realismo dramático ou literatura regional de cartão postal, mas de literatura especulativa, não muito bem vista pela academia. Tive consciência de que eu sabia fazer algo bem. Me transformou de forma ao notar que eu tinha a dizer, ou melhor escrever, em forma de ficção.
Como a bagagem dos livros anteriores ajudou na construção da obra?
Em 2021 lancei O Fim de Todas as Coisas. Desenvolvi os temas que já vinha tratando nesse livro novo. Acho que A Lança de Anhangá ganhou uma roupagem mais acessível. O Fim de todas as Coisas é bem pesado. Em A Lança eu soube equacionar melhor a luz e a escuridão. Mais escuridão e pouca luz, sempre.
Por que escolher o gênero adotado? Desde quando escreve dentro do gênero?
Quando comecei eu era mais influenciado pelo realismo social: Maupassant, Balzac, Flaubert, Graciliano Ramos. Eu escrevia prosa realista com forte dose de crítica social para chocar. Depois a ficção fantástica foi se impondo. Autores que lia na adolescência ganharam mais força: Poe, Tolkien, King, Lovecraft. Há outros que ainda são minha grande influência: Arthur Engrácio e Milton Hatoum, Clark Aston Smith e Algernon Blackwood, Lucchetti, Rubem Fonseca. Acho que se fosse me rotular eu seria um fantástico regionalista.
Quais são as suas principais influências artísticas e literárias?
Quais influenciaram diretamente a obra? Graciliano Ramos, Balzac, Arthur Engrácio, Milton Hatoum, Poe, Tolkien, Stephen King, Lovecraft, R.F. Lucchetti,Algernom Blackwood e Aston Smith. A literatura indígena também: Daniel Munduruku, Yaguarê Yaman, Kaka Wera. Acho que na pintura em geral admiro Hahnemann Barcelar, Jhon Howe, David Allen Dunlop. Na música, como sou guitarrista e toco violão nas horas vagas: Black Sabbath, Cream, Iron Maiden, BB King, Hendrix, Silibrina, Tool, Motorhead, Ac/Dc. Nox Arcana, Augusto Licks, James Turner, Jethro Tull, Mariana Aydar, Lenine, Zeca Baleiro, Alceu Valença.
Como você definiria seu estilo de escrita?
Eu me considero um contista. Neste livro, segui em grande parte a estrutura do Edgar Allan Poe e das histórias Noir do Rubem Fonseca. Gosto da forma como Poe usa a história curta para transmitir um sentimento ou uma impressão de forma concentrada e que impacte o leitor. Como eu disse: posso ser encaixado como um autor de fantástico regionalista, mas sem essa carga pejorativa que o regionalismo tem na literatura nacional.
Você escreve desde quando? Como começou a escrever?
Em 2003 eu estava num momento ruim da minha vida, comecei a colocar tudo no papel e me fez tão bem que não parei mais. Eu tinha acabado de ler Senhor dos Anéis, O Silmarillion e Histórias Extraordinárias do Poe. Foi um impacto para mim.
Você tem algum ritual de preparação para a escrita? Tem alguma meta diária de escrita?
Tomo um banho antes, preparo um café, deixo a mesa arrumada, coloco algo de rock, clássico ou jazz no som e começo o trabalho duro. Tenho ouvido muito jazz, Miles Davis é o cara. Ultimamente estou preferindo escrever em cafeterias. Não porque seja charmoso, mas porque o barulho neutro me dá melhor concentração. Não existe charme ou inspiração da hora de escrever: só suor e sofrimento. Escrever, revisar e cortar. Tudo isso é trabalho intelectual, de um operário mesmo. Eu trabalho da mesma forma que um carpinteiro faz um móvel ou um metalúrgico faz suas atividades na fábrica. Concentração e disciplina. Essa forma de ver a ficção eu importei da academia. Escrever uma tese ou uma dissertação requer a mesma postura. Não se pode alimentar-se de mitos. Aliás, mitos são muito danosos, entre 2019 e 2022 pudemos perceber isso. Eles desmoronam e caem na sua cabeça. Tenho pena de autores que dizem que não leem porque não querem se influenciar. Estão perdidos. É obrigação estar sempre lendo e se informando sobre o que está sendo produzido. Você deve saber o Estado da Arte da sua vertente ficcional. Sobre escrever: pelo menos três vezes na semana, duas laudas. Acho uma meta razoável. Mas também não podemos ser máquinas. Muitas vezes a saúde mental nos impede ou os problemas da nossa vida concreta. Quando a máquina esquenta, melhor deixar esfriando. Era o que meu ex-professor de violão popular me dizia, o mestre Ricardo Selva.
Quais são os seus projetos atuais de escrita? O que vem por aí?
Uma história leva outra. É impossível parar. Isso se tornou parte do que sou e é imprescindível para minha saúde mental. Já terminei um romance e tenho outros dois ainda esboçados como projetos, além de vários contos. A jornada seguirá até que a morte me beije.