Trecho de “Vanessa Halen: Tudo o que não quis, mas já é”, por  Patricia Tischler

Minibio

Patricia Tischler é escritora e roteirista, nascida em São Paulo e atualmente residente em Copenhague, após uma vida nômade que a levou a morar em diversas cidades ao redor do mundo. Ex-ginasta e praticante dedicada de yoga, formou-se em Direito, mas sua trajetória profissional tomou rumos distintos, passando pelo Itamaraty e pelo audiovisual. Leitora ávida de ficção, encontrou na escrita em prosa a liberdade para expressar suas investigações e experiências, após anos dedicados ao estudo de roteiro em instituições como a New York Film Academy e a London Film Academy. Seu primeiro romance, “Vanessa Halen: tudo o que não quis mas já é” (135 págs.), marca sua estreia na literatura.

PRÓLOGO

Odeio pousar em Guarulhos. Não entendo um lugar que é feito para as pessoas irem e virem, mas onde ninguém consegue chegar nem sair. O que esperam, que cada passageiro tenha fortunas para se locomover ou, vencido pelas dificuldades, decida magicamente morar no meio do nada com lugar algum, só para ficar perto do aeroporto?

Well, isso é São Paulo. 

Vivo pensando que existem tantos lugares melhores para ir, mas sempre acabo voltando. A cidade faz parte de mim na composição dos meus ossos, no jeito desconfiado com que antecipo a aproximação de alguém, na rapidez com que mudo de calçada antes mesmo de me dar conta de que estava prestes a ser assaltada.

Mas aqui estou. E agora que me vejo nesse trânsito dos infernos, dentro desse taxi nojento que vai me cobrar os olhos da cara para me levar até o apê da titia, não podendo nem ao menos abrir a janela sem ficar paranoica com a onda de violência, posso ver o quanto senti falta dessa acolhedora cidade. Para piorar, pelo jeito o motorista é fã de rock. Juro que se começar a tocar Van Halen, me jogo pela janela. Ou samba. Tudo a mesma merda. 

Na verdade, não tive alternativa. Tinha que vir. Primeiro, não podia continuar vivendo a vida dos últimos anos. Muito intensa, muito pública, muitas demandas, muito desgaste, e para quê? Já não aguentava mais. Além disso, agora tenho um apartamento para cuidar, deixado para mim no testamento da minha tia-avó.

Ah, titia, que falta me faz nossas cartas-conversas. 

Como alguém morre assim de repente? Não consigo me livrar dessa pergunta. E ninguém questionou nada, do legista ao resto da família, todos aceitaram a causa mortis sem qualquer sombra de dúvida: ataque cardíaco.

Mas eles não sabem de algumas coisas que eu sei. Por exemplo, que no último check-up o médico, inconformado com os resultados estelares dos exames laboratoriais de titia, pediu 35 novos testes, inclusive um cardiovascular. Apesar de seus 86 anos, ela estava em perfeita forma física. E mental. Ninguém na família era capaz de manter um papo tão bom quanto ela. Ou de ganhar dela no buraco. 

Eu doaria até o último cent de dólar que tenho no banco, só para ter mais uma noitada de bombons e baralho com você, tia.

Quando falei com Caco, meu primo, no dia do enterro (Nunca vou me perdoar por não ter vindo. Malditas obrigações profissionais!), ele me garantiu que acompanhou todo o processo e que não havia qualquer dúvida. Exames ou não exames, é esperado que o coração de uma octogenária se renda em algum momento. Mas, por alguma razão, um infarto fulminante não me soa correto. Como assim, infarto sem sinais anteriores? E me recordo vagamente de ter visto algo sobre os sintomas de problemas cardíacos serem diferentes para as mulheres. Mas sei lá, algo não me deixa aceitar essa resposta assim facilmente.

A família toda sabia que eu seria a única herdeira. Que eu sempre a considerei minha única família significativa. E ela a mim. Nem sei se minha mãe foi avisada, é provável que Maria Eleonora tenha feito as honras. Mas se ela foi ao enterro ninguém me disse nada. Tanto melhor.

Além da família, tem as “trezentos-anos-de-história”, como eu carinhosamente chamava o grupo de amigas da tia Leila, que se conheciam há mais de meio século. Agora, delas só sobrava uma, que eu conheço a minha vida inteira. Se há uma coisa que sempre invejei em titia são suas amizades de longa data.

O que poderia ter causado algo tão dramático quanto um infarto? Enfim, já que vim até aqui, vou aproveitar e dar uma investigada. Afinal, tenho que fazer jus ao prêmio Selden Ring de jornalismo investigativo que me deram. Quem sabe uma imersão nas coisas dela, enquanto me livro da tralha que ela sempre gostou de acumular, não me dê uma noção melhor sobre as partes que não conheci de Leila Soares?

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