Trecho do livro “Crônicas de Um Mundo” de Roger Dörl

Roger Dör nasceu em Curitiba (PR), cresceu em Joaçaba (SC) e atualmente vive em Brasília (DF). Formado em Artes Cênicas e especialista em Letras, já atuou como professor, produtor cultural e redator. Hoje, dedica-se exclusivamente à escrita e à música. Seu estilo literário busca equilibrar acessibilidade e profundidade temática. Entre suas referências, o autor cita…


Roger Dör nasceu em Curitiba (PR), cresceu em Joaçaba (SC) e atualmente vive em Brasília (DF). Formado em Artes Cênicas e especialista em Letras, já atuou como professor, produtor cultural e redator. Hoje, dedica-se exclusivamente à escrita e à música. Seu estilo literário busca equilibrar acessibilidade e profundidade temática. Entre suas referências, o autor cita nomes como José Saramago e Mário Quintana. Cinco contos ambientados em um futuro próximo, em que a realidade virtual domina a vida cotidiana, compõem “Crônicas de Um Mundo” (320 págs.), novo livro de Roger Dörl. Atualmente, Roger prepara seu segundo romance, previsto para o primeiro semestre de 2026, continua escrevendo contos para antologias e mantém uma rotina de publicação mensal de contos gratuitos em suas plataformas digitais.

TRECHO 1 –  Conto: Cybelle e a Incerteza Cibernética

Cybelle se esforçava para não olhar muito para Benício, ainda perturbada pela proximidade física, mas, afinal, foi ela mesma quem retomou a conversa.

— Então, essa IA — perguntou. — O que a deixou tão perigosa?

— A Rosares foi criada como um centro de pesquisa há quase um século — explicou Benício. — Sua intenção era estudar o amor e o potencial que ele tem como arma.

— O amor como arma? — ela estranhou.

— Basicamente, acabou se tornando uma pesquisa sobre a manipulação. Usar a ideia de amor é um modo bem eficaz de se controlar alguém, mas ele também pode ferir de outras formas e destruir as pessoas a um nível tão profundo que torna muito difícil para elas se reconstruírem.

Mais uma vez, a forma como ele dizia aquilo era tão carregada de sentimento que Cybelle se sentiu tocada. Rapidamente, então, encontrou presença de espírito para brincar:

— E o que aconteceu? As máquinas enlouqueceram de amor?

Benício sorriu.

— A questão é que o amor, na experiência humana, tem muitas nuances e está sempre misturado a outras coisas. Ideias, circunstâncias, instintos e até mesmo outros sentimentos. A quantidade de variáveis é muito grande, e elas costumam ser imprevisíveis. Isso, em um ambiente de pesquisa, é a receita certa para o fracasso.

— Ainda assim — lembrou Cybelle — você me disse que eles funcionaram por décadas.

— Sim. É claro que eles alcançaram muitos resultados, e colheram dados que são usados até hoje na programação de IAs de interação humana e, principalmente, nas estratégias de marketing. Mas além das limitações da pesquisa, eles costumavam ultrapassar alguns limites para poder realizá-la.

— Por exemplo?

— Por exemplo, envolvendo crianças. Eles chegaram a montar um berçário como fachada, mas, internamente, chamavam o lugar de Laboraninho.

Cybelle sentiu todos os músculos do seu corpo enrijecerem de repente. Ficou olhando para Benício com a boca aberta por alguns segundos, enquanto ele esperava que ela explicasse o motivo da reação. Mas ela achou difícil de falar, embora as palavras fossem simples. Só depois de muito esforço, conseguiu.

TRECHO 2 – Conto: Pedras e Máquinas

— Você acha que aguenta uma aventura de verdade? — perguntou alguém.

Procurando ao redor, Hill avistou um caçador com um rifle apoiado no ombro entre duas samambaias. Um pouco atrasado para reforçar o tom dramático da pergunta, um rugido de leão ecoou pelo oásis — e Hill precisou se segurar para não cair na risada.

— Quero comprar duas vagas — falou depressa.

— Curioso — disse o caçador, que era obviamente uma IA —, não encontro seus dados de usuário. Preciso confirmar sua identidade para realizar a transação.

Rapidamente, Hill fez o login em um de seus muitos perfis falsos e solicitou novamente as duas vagas.

— Oh, sim, claro, Sr. Portinari. Gostaria de parcelar sua fatura? Também aceitamos imóveis como pagamento.

— Processe o pagamento à vista — ordenou Hill.

Ficou assistindo enquanto valores insignificantes eram deduzidos de milhares de contas bancárias ao mesmo tempo, até somar a pequena fortuna que a agência acabava de receber.

— Enviamos todas as informações da viagem à sua caixa de mensagens — disse o caçador. — A Hakkennoinner agradece a preferência. Tem algo mais que poderíamos fazer pelo senhor?

— Quando partimos?

— Depois de amanhã. Às seis horas, um carro irá buscá-lo no endereço informado. Todos os detalhes estão no material que lhe enviamos, mas terei prazer em solucionar suas dúvidas, caso tenha mais alguma.

— “Terá prazer”, sim… — resmungou Hill, entre o deboche e a contrariedade. Depois, sem dizer mais nada, desconectou-se.

Ao abrir os olhos na escola, gritou bem alto “Consegui!” — mas, para sua surpresa, não encontrou Lana ao seu lado, e sim o rosto áspero e desagradável de Melina, uma Conciliadora Social que estava sempre em seu encalço.

— Imagino — ela falou em tom mordaz — que tenha acabado de roubar alguma coisa para manter sua vida miserável.

Hill fechou a cara.— Sua imaginação, Melina, é curta demais para ter a mais vaga ideia do que acabei de conseguir.


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