Trechos de contos do livro “Cidadão”, de Ricardo Pecego

Ricardo Pecego (Santo André, 1976) é publicitário e produtor cultural com mais de duas décadas de atuação em projetos que unem arte e transformação social. Desde 2019, dedica-se à literatura: seu primeiro livro, “Caparaó” (2020), abordou temas como identidade e pertencimento. Residente em Espírito Santo do Pinhal (SP), mantém uma livraria itinerante e media rodas…


Ricardo Pecego (Santo André, 1976) é publicitário e produtor cultural com mais de duas décadas de atuação em projetos que unem arte e transformação social. Desde 2019, dedica-se à literatura: seu primeiro livro, “Caparaó” (2020), abordou temas como identidade e pertencimento. Residente em Espírito Santo do Pinhal (SP), mantém uma livraria itinerante e media rodas de leitura para crianças e adultos.“Cidadão é seu segundo trabalho solo na literatura.

Conto: Bandola

…“Naquele ano ia ter Copa, o Telê tinha convocado a seleção. A molecada das vilas estava em frenesi. Faziam vaquinha, batendo de casa em casa, para comprar tinta, pincel, cal, brocha. Juntavam tudo que tinham só para decorar as ruas. As cores que dominavam 88 eram: azul, amarela, verde e branco. Toda paisagem se modificava: pintavam as guias, os postes, até onde se alcançava, e o chão do asfalto era uma tela preta perfeita para o contraste e a imaginação dos artistas.

Quem tivesse o melhor desenhista chamava mais a atenção dos pedestres e do pessoal de carro. Na Três Pedras tinha um moleque que pintou o mascote da Copa, um bonequinho verde de sombreiro mexicano e bigode. Na escola, em dia de jogo do Brasil, nem tinha aula, meus pais também saíam mais cedo do trabalho.

Eu e meus amigos sempre preferimos a bicicleta à bola, mas na Copa eu tirava minha camiseta da seleção do armário e saía para as bandolas uniformizado.

Durante os jogos da seleção era a melhor hora para dominar as ruas. Tudo vazio, deserto. Podíamos seguir a rua das Giestas na contramão empinando sem medo.”…

Conto: Faxina

“O café da padaria desceu queimando! Esqueci de soprar. Acordei foi pelo efeito da queimadura não da cafeína. Mais um dia que começava sem sol. Que merda de vida eu me meti. “Faz concurso!”, todo mundo dizia, como se fosse a garantia de boa vida. “Tem estabilidade!”, bela bosta. O ônibus encostou no ponto. Todos estavam indo para o mesmo lugar, a multidão se aglomera na porta de entrada. Enfiei o pão de queijo na boca e parti para o primeiro confronto do dia.
No empurra-empurra para conseguir me aproximar do ônibus, eu duelava com aquela borracha quase impossível de mastigar.

Consegui atravessar a multidão, na base da ombrada, roçando o corpo das outras pessoas. Venci a muvuca da porta. Cheguei até onde o motorista me enxergasse. Mostrei minha identificação. Engoli aquela massa seca, que desceu devagar, arranhando a garganta. Quase sufocado, sinalizei para o motorista abrir a porta de trás. Ele fez um sinal com a cabeça, apoiado no volante, parecia cansado, aguardando os embarques. Subi no ônibus. O pão de queijo descia conforme sua vontade. Só parei de senti-lo, atravessando meu esôfago, quando finalmente o ônibus conseguiu sair do ponto. Lotado.

Na escuridão o caminho não mostrava muito da cidade, as luzes dos postes acesas davam um tom ainda dormente para as avenidas. Só as bancas de jornal se atreviam a dividir conosco aquela madrugada. A cada parada, mais gente embarcava amarrotando todos numa união forçada. A sensação de aperto aumentava ponto a ponto. As pessoas se espremiam para não perder a hora.

O motorista acelerava o máximo para conseguir embalar o ônibus com aquele excesso de peso. Acho que se capotasse ficaríamos ali na mesma posição, só que de cabeça para baixo, tal era a compactação naquele container humano. Que bosta.”…

Conto: Retirantes

… “Tinha um desses meninos que aparecia vez ou outra depois do movimento do almoço lá no Copa. Ele já sabia quando chegavam mercadorias no restaurante e aproveitava para ajudar a descarregar e ganhar um prato de comida, às vezes até um trocado. Depois de um tanto de vezes que ele ajudou, Dona Vera perguntou o nome dele. O cidadão não soube responder, entregou o RG para ela. Ali estava registrada sua origem: sua data de nascimento, os nomes de seus pais e da sua cidade. Apesar do documento, ele não existia mais para sua cidade. Era justamente o contrário de Vera. No caso dela, quem não existia mais era a cidade dela. Foi o sertão que virou mar, como diz a canção.”…


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