Vera Saad (@verah_saad) é natural de Ourinhos, interior de São Paulo, mas cresceu e
vive atualmente na capital do estado. É formada em jornalismo pelo FIAM-FAAM
Centro Universitário, mestre em Literatura e Crítica Literária e doutora em
Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). A trajetória
literária da escritora começa ainda nos anos de 1990 quando vence o concurso de
contos Sesc On-line em 1997, avaliado pelo consagrado autor Ignácio de Loyola
Brandão. A escritora foi ainda finalista do VI Prêmio da Jovem Literatura Latino-
Americana com o romance “Estamos todos bem”.
Mais recentemente publicou o livro de contos “Mind the gap” (Patuá, 2011), e os
romances “Telefone sem fio” (Patuá, 2014) e “Dança sueca” (Patuá, 2019), que ganhou
menção honrosa no Concurso Internacional de Literatura da União Brasileira de
Escritores (UBE/RJ). “A face mais doce do azar” (Editora Claraboia, 136 pág.) é o seu
romance mais recente. A autora também mantém uma coluna na Revista Vício Velho.
Trecho 1
Talvez não houvesse medo. Talvez Antônio não sumisse do mapa e tudo fosse
diferente se Collor não tivesse se candidatado e ganhado as primeiras eleições diretas
após um longo período de ditadura militar. Já reescrevi algumas vezes nossa história,
de quando as ruas eram cobertas por flores de piúva. Cerrávamos os olhos, o roxo sob
as pálpebras, aparvalhadas por aquele tempo seco, ocasião em que nossos pais
discutiam política ao redor de uma mesa larga. Meu tio tinha uma voz grossa, que se
sobrepunha à figura pequena da cunhada. “À merda com Collor”, gritava. Ríamos
baixo, próximas à árvore da calçada.
Collor acabava de ser vaticinado como caçador de marajás pela revista Veja. Era
matéria de capa, chamava de marajás os funcionários públicos que ganhavam quantias
exorbitantes. Não entendíamos o que eram marajás, mas aprendemos a odiá-los. A
matéria era grande, muitas fotos de um candidato até então obscuro, mas que
ganhava popularidade.
Trecho 3
Mamãe era pequena, media um metro e cinquenta e nove. Quando se sentava,
os pés mal tocavam o chão. “Falta pouco pra me alcançar”, dizia, com a mão direita
entre o topo da minha cabeça e seu queixo. A mão menor do que a minha. O queixo
menor do que o meu. Medíamos nossos pés, o meu também maior. Imaginava aquele
corpo mínimo carregando o meu. Às vezes, parecia frágil; outras vezes, parecia
carregar outro corpo, a força de um outro corpo que desafiava o mundo. Capaz de
carregar o meu ainda hoje.
Aquele outro corpo que brigava pelo espaço baixo que ocupava. Quantas vezes
me peguei imitando sua pose ereta, seus olhos fixos no marido. Fazia isso com Maira,
meus olhos fixos na prima, que não entendia nada. Ríamos juntas. Durante a eleição
presidencial, a primeira eleição que Maira e eu acompanhávamos, de muitos
candidatos, mamãe escolhera um. Por ser jovem. Ou por ser bonito talvez. Ou mesmo
por caçar marajás. Nunca o saberíamos. Foi uma surpresa quando disse o nome dele
pela primeira vez. Nem mesmo meu pai esperava por aquela. Minha mãe com a revista
no peito, dizendo a todos quem ganharia a eleição.
Trecho 3
Continuava soltando gritinhos, “Eu dei, eu dei”, o corpo se contorcia, em
movimentos curtos, braços soltos, voo sem direção. A lua chegava ao quarto pela
fresta da cortina. A pele brilhante de Maira sob aquela coreografia me convidava a
sapatear os últimos dias da década de 1980. Demos as mãos e giramos com a garrafa
de Keep Cooler entre elas. Keep Cooler de cereja, Halls de cereja. Caí na cama. Foi
quando ouvimos nossos pais entrarem em casa munidos de inseticida. Últimos dias da
década de 1980, cheiro de cereja e inseticida. Voz de Lula e Collor. Voo sem rumo de
Maira e de baratas voadoras. Nosso azar suspenso sem que soubéssemos.
Quando eu era mais nova, antes de nos mudarmos para minha avó, uma cena
havia me marcado no prédio em que morávamos. Estava no pátio com amigos. Vi
minha mãe no portão com compras e corri para ajudá-la. Ela me chamou de canto e
então segredou que acabara de ouvir que o pai de uma das crianças que brincavam no
pátio sofrera um acidente de carro e falecera. A filha ainda não sabia. Olhei para a
menina, brincava com todos, ria com um, xingava outro, seguia a brincadeira. Aqueles
eram os últimos minutos em que ela brincava daquela forma. Últimos minutos em que
era criança daquela forma. Ela brincava, ria, xingava sem saber que em alguns
instantes perderia a graça, o riso. Perderia a inocência, aquele sopro leve que nos
afasta da matéria bruta de que somos feitos.
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