Três trechos de contos do livro “A Lança de Anhangá” por Ricardo Kaate Lima

Nascido em Manaus em 1984, Ricardo Kaate Lima é um escritor e pesquisador dedicado à riqueza cultural da Amazônia. Doutor em Ciências Sociais pela UNESP e professor no Instituto Federal do Amazonas, o autor é uma estudioso da região e se dedicou a pesquisar sua terra. Atualmente, é professor do Instituto Federal do Amazonas – Campus Manacapuru e líder do Grupo de Pesquisa Educação e Ciências Humanas na Amazônia. Em 2024, publicou “A Lança de Anhangá” (224 pág.), um livro de contos que mistura sci-fi, fantasia e horror com o folclore amazônico, e que conquistou o Prêmio Literário Cidade de Manaus

O Prelúdio da Escuridão

“A cosmologia dos Tupinambá e dos Mawé possui uma série de deidades, espíritos e visagens. Quando estudamos isso na universidade, achamos que tudo não passa de mitologia, que são só invenções do espírito humano para dar sentido a essa vida tão insegura e breve. — Olhou para o copo, viu que estava quase vazio, virou os olhos para os lados, observando a platéia, riu, e balançou a cabeça. — O buraco é mais embaixo. O falecido professor Cristiano Pereira coletou relatos dos últimos descendentes da tribo dos Mainá, que diziam que, com a conquista e o fm de todas as coisas, as deidades do oeste retiraram-se para o mundo subterrâneo, mas o Anhangá, servo de Yurupari, o senhor das regiões escuras e devorador de almas, hibernava numa região remota da floresta, e poderia um dia ser acordado para vingar os povos das humilhações de seiscentos anos.

Nos lugares mais pobres e afastados, onde as operações em busca de Anhangá se iniciaram, o regime colocou seus melhores psicopatas para trabalhar. Frios e sedentos por morte, atiravam nas pessoas apenas pelo prazer. As licitações para compra de armas, armaduras biônicas e androides de guerra triplicaram a fortuna dos empresários do setor de armamentos. Mas ninguém encontrou Anhangá.”

O Verde, o Cinza e o negro

“Passou andando pela Praça dos Povos. Repleta de turistas, como sempre. Pessoas passeavam tirando fotos das araras e dos gaviões que planavam baixo e pousavam nas árvores milenares que margeavam os igarapés artificiais. Turistas faziam poses para fotografas sob as estátuas dos deuses ancestrais ou conversavam com hologramas em postos de informação. Lembrou do dia em que viu aquilo pela primeira vez, ainda menino, acompanhado dos pais em um passeio de sábado à tarde. Todo esse espaço aberto de árvores, monumentos, jardins e fontes de água com peixes. O complexo de construções imponentes: o centro de poder da República Confederada dos Povos da Amazônia. No centro, o brasão nacional, o gigantesco gavião-real de duas cabeças, uma cabeça apontada para o leste simbolizando a Amazônia oriental, e outra cabeça apontada para o oeste, simbolizando a parte mais ocidental do país. Ainda hoje, deixava-se admirar pela grandiosidade da paisagem e, em especial, pela estátua de bronze de quase cinquenta metros que ocupava a outra parte mais extrema da praça. Era Ajuricaba, o pai da nação, segurando uma lança em uma das mãos e a cabeça de um inimigo derrotado em outra. Anunciava, em tom ameaçador, que ninguém seria capaz de invadir aquele mundo feito de verde e água.”

O Forasteiro

“Para a surpresa de Heitor, dona Joana não era tão mal-educada quanto falaram. Embora fosse desconfiada, e tivesse um semblante severo, não se furtou a recebê-lo. A hanseníase estava controlada, mas fez bastante estrago na idosa, que naquele ano contava com setenta e dois anos, e morreria seis meses após aquela entrevista. Os dedos de uma das mãos não mais existiam, e sua perna era amputada quatro dedos abaixo do joelho. Sentada sobre a cama, examinava Heitor se ajeitar sobre uma cadeira de madeira, sacar o gravador e aprontar o bloco de notas.

— Eles vieram aqui querendo saber sobre o que aconteceu com os Arautos — disse ela entre uma baforada e outra do cigarro de palha. — Mas avisei. O mundo está cheio de coisas ruins que rastejam sob o escuro do céu, doutor.

— O que a senhora avisou, dona Joana?

— Às vezes vejo coisas sumindo atrás das árvores, vultos de pessoas acenando sob a noite que cai.

Ao ouvir essas palavras, Heitor sentiu um estremecimento.

— Você deve ter visto algo também — disse ela ao observar como o jornalista mexia-se desconfortável na cadeira.

— Vi alguém esquisito acenando para mim na estrada. Só isso.

— Somos moscas perdidas neste mundão de Deus, seu Heitor. E algo ainda dorme sob o chão desta terra. Quando era mais nova, sempre avisei todo mundo, mas ninguém me dá ouvidos. Me chamam de louca, de endemoniada.

— Que tipo de coisas, dona Joana?

— Meu filho, deixe isso para lá. Vá fazer outra história. Deixe aquilo que vive debaixo das ruínas em paz.”

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