Vilto Reis (@viltoreis) é escritor, roteirista de quadrinhos e professor de escrita criativa, além de jogador de RPG e participante do Podcast 30:MIN. Autor de ‘Nascida para o trono’, ‘Fim do império’ e ‘Um gato chamado Borges’, livro finalista do Prêmio SESC 2015, tem contos em antologias e revistas. Esteve à frente do Homo Literatus, da Editora Nocaute e da Revista Pulp Fiction, e foi jurado do Prêmio Jabuti 2022. Atualmente, mantém um canal no Youtube sobre escrita, ministra cursos e oferece mentorias.
TRECHO 1:
TRECHO 1:
Sob protestos, ela levantou da cadeira e esbarrou em dois homens que dançavam tão encaixados que se fundiam em um só. O encontrão a jogou sobre a mesa de jogo, derrubando o desconhecido que seguia inconformado por perder a chance de ganhar mais dinheiro. Núbia se desculpou e afirmou que precisava beber.
Quem a visse logo depois gingando por entre os dançantes, saberia que ela não teria esbarrado em alguém como aconteceu. Talvez por isso segurasse um saco de camarenas, arrancado do homem que a derrotara no jogo.
Depositou as moedas sobre o balcão e sussurrou para a atendente. Enquanto esperava, Núbia virou-se para a multidão, acomodando-se ao lado de uma placa que dizia: “se entrares, deves beber; se brigares, apanharás; se vieres para não dançar, deves procurar outro lugar”.
À sua volta, estendia-se o Festal Lula Maneta. A estrutura mambembe consistia em um aglomerado de barracas emendadas em outras barracas, sustentadas por varas que balangavam tanto quanto os elementos que dançavam por ali. A fumaça das tochas espantava os mosquitos e defumava as pessoas, mas quem ligava? Não importava o dia da semana, nem o fato de ser um dos festais mais humildes da Cidade Prateada, sempre enchia. Era o ponto de encontro dos desapossados que viviam na parte pobre da capital. Gente que encarava o trabalho pesado durante o dia, nem sempre honesto, para à noite viver a fuga da realidade, consumindo ervas, cogumelos ou as diferentes bebidas da casa. Era um espaço frequentado pelos desconhecidos, como o músico sem braços que animava a multidão dedilhando a kora com os dedos dos pés, tratado pelo nome de “deus da Cidade Baixa”.
Núbia recebeu da atendente uma caneca de vinho de palma e a entornou de uma só vez, deixando que a espuma branca escorresse pelos cantos da boca. Em seguida, ela limpou com o braço, mas não adiantou. A emoção do jogo, de um roubo fácil, da bebida que tanto apreciava, nada, nada conseguia preencher aquela sensação estranha e persecutória, um mau pressentimento de que algo grave aconteceria naquela noite.
Olhou para fora, em direção à borda das tendas, como se precisasse fugir. Quantas pessoas se aglomeravam ali? Duzentas? Mais? Não importava, precisava ir antes que o rebote daquele sentimento a tomasse por completo.
Afastou-se do balcão.
— Já vai? — uma voz querida murmurou no ouvido dela. — Quer estender a noite em outro festal que não o meu? Assim, você me ofende.
TRECHO 2:
— Passeie comigo — Lakrav Demur disse.
Em seguida, ele ofereceu o braço livre do cajado. Foram adiante, com as vestes estampadas dela roçando nas sobreposições de panos vermelhos e alaranjados que ele enrolava no corpo.
A chuva vinha diminuindo e naquele dia Teth-Tá brilhava no céu, pressagiando a chegada da Estação da Colheita.
A Zona dos Artesãos era uma das melhores amostras do povo de Camara. Consoante às batidas das ferreiras nos metais das forjas, tecelões urdiam tecidos que virariam roupas e sapateiras talhavam o couro em sapatos ou bolsas. Griôs recém-chegados à Cidade Prateada aproveitavam as batidas monótonas como marcação de tempo para adicionar a melodia das canções narrativas. As koras eram acompanhadas por berimbaus e flautas, concebendo uma grande orquestra de improviso. Ninguém marcava para se encontrar ali, a convergência apenas surgia, motivando as danças em grupo. As crianças corriam para o meio de rodas, gargalhando não menos que os adultos. Os vendedores ambulantes eram atraídos pela multidão. Vinham tentando gritar mais alto que a música, vendendo doces de mel, fatias de bolo de milho cremoso, torta moín moín, torta do primeiro guardião, shuku shuku, melancias e o que mais se pudesse comer e oferecer a alguém. Ali mesmo na rua, bananas-da-terra eram fritas e dadas ou vendidas, conforme a necessidade de quem as produzia. De repente, dois velhos começaram a compartilhar um garrafão de vinho de palma. Um voluntário se oferecia para ocupar a função do fiandeiro por um tempo, para que este ocupasse um lugar na roda de dança. Era uma rápida troca de favores com a promessa de que se devolveria no futuro, porém ninguém lembrava de cobrar. Raramente um dia triste se veria por ali.
Menos mal que Núbia se distraiu, dado que o acompanhante não se mostrava a companhia mais agradável.
TRECHO 3:
Núbia se enrijeceu. O único olho começou a emanar um leve brilho dourado. Ela pulou da plataforma, as duas fontes de poder se romperam em energia, liberando Ka, e deu um soco no chão em frente ao palco. Parte das pessoas chegaram a cair, desequilibradas pela rachadura no solo.
— Primeiro, vão me ouvir. Depois, me julgar — disse, e o silêncio se restaurou. Recebeu alguns olhares horrorizados. — O totem está em mãos de um exército rebelde que anseia tomar nossa cidade, nosso lar. Enganadores e larápios que vêm com língua pequena, tentando colar as mentiras deles, porém não enganarão o povo da Cidade Prateada.
A multidão prestava atenção.
Ela continuou.
— Querem me acusar de ser quem sou? Que me acusem, mas quando estiverem em segurança atrás das paredes de casa, soltando as línguas venenosas e preconceituosas, parem por um momento e lembrem-se quem arriscou tudo por vocês. Eu vou defendê-los e darei a vida se for preciso. Por quê? Porque vocês são meu povo e eu vou provar que independente de quem sou, não deixo de ser uma camariana. Só não esqueçam de uma coisa, o totem não é da Guardiã, não me pertence. O totem é de vocês. Quem vai me ajudar a recuperar essa porcaria?
Alguns gritos se juntaram a ela.
Núbia deu outro soco, juntando as mãos e provocando mais rachaduras no solo.
— Quem vai se juntar a mim?
Mais pessoas urraram em resposta.
Ela repetiu o golpe e, dessa vez, a rachadura alcançou a estátua do primeiro Guardião. O Kaphinotep de pedra se inclinou para o lado. Entre a multidão, vários ficaram boquiabertos, um ou outro levou as mãos à cabeça ao ver aquilo, mas graças aos deuses, a estátua não caiu. Diferentes gritos de vivas surgiram.
— Camara!
— Núbia!
— Mahen!
Cantos voltaram a ser entoados de improviso, como se alguém ordenasse a ação da magia musical dos instrumentos antes que outro grito na multidão pudesse reverter a maré favorável.
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