Um Diálogo com Milena Martins Moura sobre Erotismo, Religião e a Liberdade Feminina

Em seu mais recente livro, O Cordeiro e os Pecados Dividindo o Pão, publicado pela Aboio, Milena Martins Moura, poeta carioca, mergulha em uma jornada poética que desafia as convenções religiosas e explora a interseção entre o sagrado, o corpo e o desejo femininos. Com uma escrita corajosa e subversiva, Milena conduz seus leitores por versos que transcendem as fronteiras da tradição, desvelando uma visão única sobre a feminilidade e a liberdade.

Milena, nascida no subúrbio do Rio de Janeiro em 1986, é uma figura literária multifacetada. Além de poeta, ela é editora, tradutora, mestre em Literatura Brasileira pela Uerj e atualmente doutoranda em Literatura Comparada pela UFF. Com uma série de obras já publicadas, incluindo Promessa Vazia e A Orquestra dos Inocentes Condenados, Milena destaca-se como uma voz distintiva no cenário literário contemporâneo.

Confira uma entrevista com a autora.

Se você pudesse resumir os temas centrais do livro, quais seriam?

Erotismo, religião, dessacralização do sagrado, interdições às liberdades femininas.

Escolhi estes temas porque eu sou uma mulher que foi criada sob o tacão da culpa e que cansou de enxergar seu desejo como um erro e seu corpo como sujo. Se existe um deus e ele me deu corpo e desejo, então corpo e desejo são milagres, não pecado.

Em primeiro lugar, esse título surgiu dos dois versos finais de um poema do meu livro anterior, A Orquestra dos Inocentes Condenados, e são justamente os que aparecem na quarta capa dele. Eu tenho uma tradição de colocar só alguns versos na quarta capa. No Cordeiro, por exemplo, um verso do poema “cassandra”: “uma mulher não se consome pelo fogo”. E eu gostei muito, enfim, desses dois versos, tanto que acabaram virando o título de um dos poemas do Cordeiro. De título do poema, a frase passou a título do livro, porque achei que tinha um caráter que engloba todos os temas trabalhados.

A figura do cordeiro na mitologia judaico-cristã simboliza a imola pela qual se alcança a remissão dos pecados. Jesus, o messias que é justamente a pedra de toque criadora da fé cristã, em contraposição à sua raiz hebraica, é o cordeiro de Deus, que tira os pecados do mundo. Então o cordeiro e os pecados estão sempre em posição oposta. A ideia aqui era colocar a imola, aquela que deve morrer, como um corpo vivo e pulsante, aproveitando da companhia dos pecados, que representam o lado animal (aquele que afasta o humano da santidade), e ainda assim à mesa sagrada da eucaristia, com o pão e o vinho que representam essa mesma santidade. E vamos lembrar que esse cordeiro, no livro, é eva e, mais do que eva, uma mulher, essa figura posicionada sempre ao lado do erro e do pecado quando ousa ter voz e vontade. O que eu quis mostrar foi uma potência de resistência dessa mulher, que é cada uma de nós ainda hoje, para se sentar à mesa santa com seu corpo de fêmea, símbolo de tentação e de danação desde o mito genético fundador dessa mitologia. Essa é uma mulher que reivindica seu corpo para fruir e seu espaço para ocupar.

A figura da mulher ocupa sempre o lugar da tentação, do pecado e da consequente danação. A curiosidade, a vontade, a voz e a insubmissão da mulher são gravadas como erro nos mitos sagrados que permeiam a cultura ocidental há bem mais de dois milênios. Historicamente, vimos esse padrão mitológico ser posto em voga na vida em sociedade. Quando falamos em apagamento e silenciamento de mulheres, não podemos esquecer que essas não são apenas metáforas, simbolizando que as mulheres foram trancadas à esfera doméstica ou tiveram seus feitos retirados da história, ou que a história das mulheres não é contada e muitos dos seus louros são creditados a homens (está aí o livro da Anna Faedrich, Escritoras Silenciadas, pra mostrar que, mesmo laureadas em vida, podemos ser simplesmente esquecidas com o passar dos anos). Não, mulheres foram literalmente apagadas: queimadas, torturadas, violentadas e mortas. Os nossos corpos foram obliterados. E assim muitas continuam sendo ainda nos nossos dias, vejamos o número alarmante de estupros, agressões e feminicídios. E se as liberdades femininas sempre foram cerceadas, o que a gente pode falar sobre a sexualidade?

A tradição poética do erotismo escrito por homens colocou a mulher como objeto silencioso de desejo e, quando em raro lhe é dada voz, cujo único desejo é satisfazer seu parceiro. O que vemos nos nossos dias são mulheres reivindicando, em primeiro lugar, seu direito ao corpo e à fruição do gozo, em segundo lugar, um sexo desierarquizado, em que não existam posições ativas e passivas (essa sempre imputada à mulher) e cujas vozes tenham pé de igualdade, sem silenciamentos. Mas, antes de atingirem essa esfera, vemos também mulheres denunciando a condição em que somos postas e resistindo às interdições que nos são impostas. É impossível falar de erotismo escrito por mulheres sem falar de denúncia e revolta. A mulher foi calada e apagada e é por isso que hoje estamos gritando. Nos colocamos na condição de sujeito, cada qual com seu único corpo, porque não temos um corpo, somos um corpo, e o direito a ele deve ser inalienável. Mas somos também sujeitos pela voz. E juntas fazemos um coro e tanto.

Quais influências literárias moldaram seu trabalho? Quais livros específicos influenciaram diretamente a obra?

Eu gosto de muita coisa, em diversas esferas de conhecimento, desde as artes, a literatura e a música até astronomia. Acho que todos os meus interesses formam o que sou e o que sou é justamente quem escreve. Não me refiro a uma pegada autobiográfica especificamente, mas a tudo. O que eu produzo, por mais afastado de mim que pareça, sai de mim. Então não sei se consigo listar nomes específicos. Está tudo aí: de um episódio de Doctor Who a um livro de Carl Sagan, às autoras eróticas ou não escrevendo poesia hoje, ao quanto eu chorei vendo O Curioso Caso de Benjamin Button. Não há nada a desprezar, minha poesia é uma colcha de retalhos.

Mas o erotismo produzido pelas poetas mulheres contemporâneas não pode deixar de ser citado. Como um grande enigma Tostines, o meu contato com essa escrita me ajudou a escrever o livro e escrever o livro me deu ferramentas pra me aprofundar nessa escrita. O erotismo tem sido usado como um instrumento político de resistência. Esse é justamente o cerne da minha pesquisa: ver como isso tem se manifestado, com que vertentes e de que formas isso se mostra na poesia erótica escrita por mulheres hoje, no contemporâneo. Quando nós lemos mulheres escrevendo erotismo hoje isso não se limita a falar do desejo ou do ato sexual, o que já seria bem legal, já que a erótica feminina quebra as tradições de silenciamento e passividade da erótica masculina. Mas não só. Vemos também mulheres falando dos seus corpos e os colocando em uma posição que usa o erótico como poder, como dizia a Audre Lorde no livro Sister Outsider. É um erotismo que tem um caráter de denúncia e revolta, que quer mudar o paradigma social feminino, esse recorte de gênero que nos quer representando um papel secundário, submisso, refém da indústria estética, como diz Naomi Wolf, preso à exploração das nossas funções reprodutivas e todas essas questões que a gente sabe, porque só mudando esse paradigma é possível alcançar o direito à plena fruição do corpo e do gozo feminino. Se o corpo da mulher é um território colonizado, é preciso primeiro declarar independência. Só então esse corpo vai ser realmente livre para gozar. Por isso, esse livro é uma mulher que deseja mas que também se rebela, que goza mas que também reconhece suas limitações e busca ultrapassá-las e que não se envergonha nem da nudez nem do grito mas também reconhece as implicações negativas disso e luta para que seu corpo seja genuinamente livre. E em cada poema existe uma mulher que é muitas, que se estende para alcançar as demais, pra que nenhuma mulher esteja sozinha. Não podemos falar em poesia escrita por mulheres hoje sem falar em coletividade. E raiva.

O que motivou a escrita do livro? Como foi o processo de escrita?

O Cordeiro teve uma clara intenção de abandonar o estilo aplicado no meu livro anterior, A Orquestra dos Inocentes Condenados, que se voltava sobre a solidão pandêmica de uma perspectiva do sujeito autista. Conscientemente ou não, busquei outra temática e outra forma poética, tentando fugir à exigência de que um sujeito neurodivergente só deva falar sobre seu transtorno.

Este é um livro que traz uma poética mais densa e obscura, com referências religiosas que remetem à criação católica que recebi e da qual me rebelei eventualmente. Uma poética que dessacraliza o sagrado, o traz para o terreno humano e lhe dá corpo e desejo. E que coloca também o corpo feminino como desejante. Escrevi o Cordeiro logo após o lançamento da Orquestra, aos poucos, enquanto voltávamos ao “velho normal” pós-pandêmico. Sair do isolamento foi também sair de um tipo de armadilha psíquica e me libertou para abraçar novos temas, imagens e formas. O livro nasceu lento, mas muito coerente. A escrita deste livro foi justamente o que abriu meus olhos para como o erotismo escrito por mulheres tem se desenhado hoje, o que levou à minha pesquisa de doutorado sobre o tema.

Eu brinco que o Cordeiro é uma anti-Osquestra, porque a Orquestra foi muito pessoal. Aquele foi um livro escrito durante a pandemia e num momento de severo sofrimento psíquico. Então muitos poemas ali surgiram de crises, de meltdowns, pra que eu não entrasse ou pudesse sair das crises. É claro que um livro assim seria altamente biográfico.

O Cordeiro não. Em primeiro lugar, eu não gosto da ideia de que um sujeito minoritário tenha a obrigação de só falar sobre as suas mazelas sociais, e às vezes se cria essa demanda. Então, se eu sou autista, eu não posso falar em mais nada que não seja autismo, capacitismo e tudo que isso implica. E mais do que isso: o sujeito autista sofre infantilização, muitas pessoas mudam na hora o modo de falar quando a gente diz ser autista, começam a nos tratar como crianças incapazes. Isso me irrita. Eu fui criança, claro, todo mundo, mas não sou mais. Eu sou adulta, casada, formada, doutoranda, publicada, bebo fumo e fodo rs. Então não foi só não falar sobre a minha condição. Trazer um viés erótico, dessacralizante, feminista buscou justamente desconstruir essa tendência à infantilização.

Além disso, o Cordeiro é uma anti-Orquestra também porque a Orquestra foi fluida. Como eu disse, escrevi em sério sofrimento psíquico, então tem um elemento fluxo de consciência muito forte ali. Os poemas não são trabalhados, estão lá como saíram na hora. No Cordeiro,os poemas foram trabalhados à exaustão, cada palavra, cada quebra de verso, cada pontuação ou falta dela, cada ritmo. Tudo ali tem um propósito muito específico, nada está ali por acaso. Então esse é um livro mais pensado, mais trabalhado e, consequentemente, muito menos pessoal. Tem muito da minha pesquisa ali (do projeto, na época da escrita) e também muito das minhas ruminações das leituras de erotismo e poesia feminista que eu tenho feito ao longo dos anos. Por isso, apesar da menção ao meu nome e outros traços que quem me conhece bem vai reconhecer (e eu acho que isso é bastante natural), esse livro tem uma questão forte com a coletividade, com uma certa figura de mulher que eu represento e que outras mulheres também representam, e como nós estamos nos colocando socialmente como sujeitos de palavra e de ação.

Como você definiria seu estilo de escrita?

Na Orquestra, urgente, desesperado, rápido, faminto. Aqui, lento, cuidadoso, criterioso, aparador de arestas. Quase um reencontro comigo mesma, com a sanidade que o isolamento me roubou.

Como é o seu processo? Tem algum ritual de escrita?

Levo três semanas escrevendo um poema, termino, nunca mais olho pra ele.

Não tenho nenhum “ritual”, na verdade. Gosto de escrever de manhã, quando é calmo. Mas aí o poema resolve sussurrar no meu ouvido no meio de uma aula do doutorado. Então eu não tenho muita escolha não.

Como começou a escrever?

Aos nove anos de idade, lá em 1996, minha escola fez um concurso de poesias (era obrigatório participar!). Acabei gostando. Já era uma assídua leitora por influência do meu avô, que lia muito, e da minha tia, que era professora e me alfabetizou muito cedo. Escrever foi quase consequência.

Mas essa não é uma história bonita de menina prodígio não, escrevi muita porcaria pelo caminho. Acredito que a escrita seja tentativa e erro, contato, leitura, e mais tentativa e mais erro. Sempre acho que o que escrevo hoje é melhor que o de ontem, porque hoje já vivi um dia a mais, já li mais, conheço mais. É o curso de toda vida: experiências são epifânicas e isso vale pra escrita também.

Quais são os seus projetos atuais de escrita? O que vem por aí?

Em 2024, está prevista a edição do meu primeiro romance, Violenta, em título provisório, pela Macabéa Edições, que me recebeu recentemente também no seu corpo editorial. Violenta é um retorno ao tema do autismo, mas uma continuação do tema feminista.

Adquira o livro no link a seguir: https://aboio.com.br/produto/o-cordeiro-milena-martins-moura/

Sair da versão mobile