“É barulho, mas é o nosso barulho”, diz Cid Mesquita sobre a Gangrena Gasosa

Tudo não passava de escracho. A definição sobre o que a banda pretendia era dos próprios membros. Dos originais, é claro. A Gangrena Gasosa teve mais integrantes que o número de filhos do agora saudoso Mr. Catra e chega um momento em que as suas fases e facetas se confundem. Confusão em família? Normal!
E como em toda família, o pau come solto. E como em qualquer família, alguns agregados acham que podem comer a farofa antes do dono da casa. Farofa, aliás, era elemento obrigatório nas apresentações da banda carioca surgida nos anos 90 na zona oeste da cidade. Difícil agora é definir quem é o dono do despacho e do terreiro do rock a Gangrena saltou para os tribunais. O elemento em disputa: o direito de utilização da marca Gangrena Gasosa e, consequentemente, os benefícios comerciais em torno de um dos mais icônicos grupos de rock da América Latina.
Para entender o que aconteceu é necessário resgatar um pouco da história da banda. Uma coisa é certa. A cabeça por trás de tudo, ou a falta de juízo que motivou o impossível, atende por Cid Mesquita. O objetivo era até que singelo: montar uma banda para abrir um show para o Ratos de Porão. O caminho encontrado foi cortar etapas com a criação de uma banda singular. Como todo louco encontra parceria, quem topou a ideia foi Ronaldo Chorão, filho de um pastor evangélico e dado à leitura de baixa qualidade (um dos livros de Edir Macedo serviria como base para a composição de algumas letras da Gangrena Gasosa). Para alguma coisa aquele livro teria que servir.
Como ser mais escroto que os punks da época? Fácil. Era só seguir Chorão e Cid. A Gangrena Gasosa, ao propor desagradar todo mundo, tornou-se um fenômeno de aceitação. Prova de que toda falta de juízo encontra adeptos. O vocalista Paulão, a quem muitos atribuem ter sido o primeiro negro no hardcore brasileiro, e o guitarrista Vladmir Rodriguez, o Vlad, entre outros, viriam a completar o núcleo que todos tem como referência quando se fala de Gangrena Gasosa. Mesmo durante a época deles a entrada e saída de membros e as participações especiais eram uma constante. O Gangrena era uma espécie de anti-banda, destinada a fazer tudo ao contrário do que uma banda de sucesso estaria disposta a realizar. Aí é que tudo começa, na mitologia em torno dos seus integrantes e das apresentações. Tocar bem – ou não tocar- qualquer um pode conseguir, a questão é formar uma história, um público e identidade e eles logo conseguiram. A receita passava por roubar despachos nas encruzilhadas da zona oeste e levá-los para os palcos cariocas. Quem ia para os shows sabia que iria participar da farra, ou da farofa.

formação clássica da Gangrena Gasosa

Frango, vela e cachaça eram sempre elementos a serem atirados contra o público que, gostasse ou não, vibrava com o fato de fazer parte de um dos espetáculos mais bizarros da história do rock brasileiro. A farra era completada com os membros vestindo-se de entidades de religiões afroamericanas.
De uma só vez a banda cumpria o seu papel de desrespeitar e desagradar os fãs mais tradicionais do metal – pois não eram exatamente uma banda do gênero –, das religiões e o público, sempre vítima da macumba alheia. Nem o tradicional programa apresentado por Jô Soares escapou, após uma entrevista apática, culpa de um despreparado apresentador, os garotos fizeram a festa nos camarins numa briga que se resolveria como tudo entre eles: um dia após o outro.
Não era uma banda para fazer sucesso ou ganhar dinheiro. E fez. Ao menos o sucesso. Dinheiro é coisa rara quando se fala do universo underground. Por uma série de razões, os membros originais da banda foram saindo e dando espaço para gente nova que chegava com disposição de segurar o frango e a vela acesa no palco. Aparentemente tudo em perfeita harmonia até a saída de Vlad da banda, no que foi o primeiro racha sério do grupo. A partir daí, Vlad e outros membros se recusariam a tocar com Angelo Arede, o ex-baixista que assumiu os vocais com a saída de Paulão.
Com Angelo Arede à frente, a Gangrena adquiriu uma outra dimensão. Resolveu priorizar a busca por uma musicalidade específica em detrimento da raiz alegórica que tinha feito o grupo chegar ao estrelato do bizarro. “Tinha muita experimentação e coragem. Acho até engraçado dizerem hoje que é uma merda, mas a ideia é genial. Pois é. A ideia é minha.”, diz Cid Mesquista sobre a fase original. “É barulho, mas é o nosso barulho”.
Com Angelo o Gangrena adquiriu uma faceta de “macumba clean”, deixou de lado a boa farofada dos shows, mantendo apenas a vestimenta do grupo. Buscaram “uma musicalidade própria”, diria Angelo em algumas entrevistas.

O DONO DA MARCA

Nesse cenário, por mais que Angelo Arede estivesse usando a marca, realizando shows e vendendo produtos como oficiais do Gangrena Gasosa, o dono da marca, ao menos burocraticamente, seguia indefinido. A formação clássica nunca sequer chegou a registrar as músicas. A turma de Arede, por sua vez, segundo Cid, nunca chegou a pagar por elas. Cid Mesquita é enfático: “não, nunca recebemos por nada”.
Existe aí uma questão além da utilização da marca. Se a atual formação do Gangrena toca músicas antigas e se faz uso da venda de produtos com logomarcas e símbolos identificando a banda em seus primórdios, porquê não paga aos integrantes atuais eventual parcela do que lhes deve? Afinal, a concepção gráfica e visual da banda é fruto da criação coletiva entre Chorão, Cid, Paulão e os demais. Grande parte das artes gráficas do Gangrena foi desenvolvida exatamente por Cid Mesquita. Existem centenas de fãs e músicos que deporiam a favor de Cid atestando ter sido ele o criador da concepção gráfica utilizada até hoje e de parte das músicas.
O que era briga de bastidores, como os desentendimentos entre Vlad, Cid e Angelo, tomou uma dimensão pública quando Cid e Paulão comunicaram Angelo que tinham uma proposta para fazer um show de comemoração aos vinte e cinco anos do lançamento do Welcome To Terreiro, clássico disco do grupo. Angelo Arede fez seu despacho (judicial) e deu um jeito de melar as pretensões da formação original do Gangrena. Para completar, solicitou o registro da banda em seu nome no INPI (Instituto Nacional de Propriedade Industrial), responsável por cuidar de marcas e patentes no Brasil. A questão segue em análise.

Ainda conforme Cid, “a princípio seria isso. Juntar a formação original, fazer uns shows pra garotada que nunca viu. O Vlad e o Felipe se recusam tocar com o Angelo. Na época eu ainda considerava (Angelo) um amigo, tanto que eu tentei negociar, Tenho quase cinquenta (anos). A gente queria fazer uns shows, enquanto a idade permite, pra molecada. mas aí eles registraram no INPI pelas costas. Eu descobri o (protocolo de registro) INPI em novembro, tipo muito em cima da hora se opor. Fizeram um crowdfunding e lançaram o disco novo deles. Eu procurei um advogado às pressas, e me opus ao registro”.
Indignado, Cid prossegue: “Mas como teve essa canalhice, a gente resolveu voltar, pra salvar a humanidade de discos “tô no DCE da faculdade com trinta anos” que essa versão do Gangrena fez. Eu falei isso em um tempo que não tinha registro no INPI, eles tocavam, músicas minhas e eu considerava o Arede meu amigo. Isso acabou. Acho que isso lhe feriu os brios. É consenso entre todos os integrantes originais; – Ronaldo (Chorão), inclusive, que embora tenha ficado fora do projeto, assinou um documento testemunhando a meu favor, – que o disco novo não tem o “espírito” da banda. Não tem a iconoclastia que marcou a trajetória da banda. A gente interage, mesmo quem saiu da banda, com os fãs mais hardcore desde antes das redes sociais. A gente só queria juntar os amigos que levaram a banda na formação do Welcome e fazer uns shows pros garotos que queriam ver isso. Dizer que “não pode ter duas Gangrenas” é meio cagação de regra e a gente nunca foi conhecido por ser obediente, certo?”
Os últimos anos, excetuando a saída de Vlad da banda e algumas discussões entre Cid e Angelo, tinham sido de aparente calmaria entre os membros antigos e o restante dos músicos que passaram pelo grupo. No documentário Desagradável (2013), sobre a história do Gangrena há participação de quase todos os que fizeram a história do sarava metal nacional e é sabido que Vlad ajudou a desenvolver o registro, embora seu nome não tenha sido encontrado na ficha técnica do filme – ao menos não na versão desta disponível na internet até o dia 10 de setembro.
“Pois é. A gente sempre colaborou de uma forma ou de outra. Agora eu fiquei surpreso e assustado com esse “xerifismo” moralista da parte deles pra justificar uma desonestidade intelectual. A gente ficou obviamente puto, tanto com o registro do INPI, quanto com as acusaçōes, eu fiz uma piada sobre gravata. E soltei um “processa a gente, arrombado. E a Gangrena Gasosa foi criada em 1990, novembro. Em 91 a gente fez uns quatro ou cinco shows, a gente gravou a demo Saravá Metal por aí, e ela virou item de colecionador, a gente em dois anos fez o que nenhuma banda da ZO, criada na ZO, sem panela, sem miguxice, só com niilismo e barulheira, sem experiência de mídia, sair do quintal da minha casa pro programa de maior audiência da TV brasileira na época (Jô Soares). Todo mundo era correria, A gravação do WTT foi picotada, a gente usava sobras de horas de estúdio. Definitivamente não era o disco que a gente queria fazer. Ainda assim o disco teve boa repercussão e esgotaram as duas mil cópias”.
Sobre quem de fato é o dono da marca e da alma do Gangrena Gasosa, o bem humorado Cid Mesquita responde de pronto: “Direito autoral é inalienável e intransferível.  Não é franquiamento.”
O que o Gangrena faz hoje não é escracho nem música, fugindo do que queriam fundadores e herdeiros da marca, está mais para stand up sem graça. Enquanto a disputa judicial prossegue, Cid, Paulão e companhia ensaiam prometendo farofa em breve.
Procurado para se manifestar, Angelo Arede não respondeu às mensagens enviadas por email e ao seu perfil em redes sociais.

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