Uma das mais longevas bandas do cenário alternativo do Rio, o El Efecto lançou disco novo este ano. Logo depois do carnaval, saiu o já clássico “Memórias do Fogo”. Em muito pouco tempo, o público decorou as letras, e tem cantado tudo nos shows que o grupo vem fazendo pelo país. Os fãs ardorosos foram conquistados ao longo de uma trajetória de 14 anos de estrada e cinco discos gravados. Depois de tocar nas principais casas alternativas do Rio de Janeiro e São Paulo, em várias capitais e fora do Brasil (com shows no Equador, Argentina, Portugal e Espanha), O EE se consolidou como um dos principais nomes do rock independente do Rio de Janeiro.
O El Efecto produz um som único na paisagem sonora brasileira. Tem como traços marcantes a fusão de gêneros musicais, as letras épicas e o tom crítico de sua poesia. Estruturalmente, a estética da banda se filia ao rock, como comprovam a formação base com duas guitarras, baixo, bateria e vocal. Mas a versatilidade dos músicos transcende esta instrumentação roqueira e incorpora percussão múltipla, trompete, flauta, viola caipira e cavaquinho. Esta variedade abre um leque de possibilidades dentro do projeto do EE, que mistura Ciranda ao Hardcore, passando pelo Xaxado e o Metal. Como resultado desta abertura criativa, ganha vida um caleidoscópio sônico que gera a impressão de estarmos ouvindo uma mistura de Rage Against The Machine com Los Hermanos, com doses de Karnak e Faith no More. Ou como se o Astor Piazzola levasse um som com o System of a Down.
Outro traço característico da musicalidade do EE, e que parece ser um dos fatores centrais para a arregimentação de seu público devotado, é o caráter combativo que a banda imprime no seu discurso artístico. A aposta neste tipo de abordagem caracteriza seu trabalho como uma contemporânea música de protesto, e enfatiza a capacidade da música operar como arma política. A banda, que já tocou em escolas ocupadas, na Aldeia Maracanã e na Vila Autódromo (espaços emblemáticos da resistência à gentrificação da cidade do RJ) e recusou dois convites globais para participar do SuperStar, tornou-se exatamente mais conhecida a partir das manifestações de junho de 2013. À época, as frases de “Pedras e sonhos”, disco de 2012, figuravam nos cartazes levados para as ruas.
Mas há armadilhas no caminho de quem quer fazer música de protesto: a facilidade com que as composições se tornam meros instrumentos de divulgação de discursos militantes (em geral, de baixa voltagem poética) ou superficiais gritos indignados, que giram em torno do moralismo e do analfabetismo político. A competência estética e lírica faz o EE escapar desta arapuca.
O grupo dialoga de forma original com uma notável tradição de artistas que trabalham a aproximação entre música e temas políticos, que vai da chilena Violeta Parra aos Racionais Mcs, passando pelos americanos do MC5 ou pelo nigeriano Fela Kuti. Por isso, cuida da potência literária do seu texto cantado com a mesma atenção com que cuida de sua instrumentação. Assim, evita a banalização dos signos políticos que mobiliza para suas canções de combate. Desta maneira, o EE sintetiza uma unidade musical singular capaz de produzir momentos fortes, em que arte e combate encontram-se de maneira virtuosa, num equilíbrio em movimento, dinâmico, que viabiliza a comunicação de uma proposta de “re-existência”. Em luta franca por uma vida mais atenta às questões comunitárias e igualitárias, o EE frequentemente consegue ampliar nossa capacidade de escuta. Sem ser autoritária ou cafona, a banda mobiliza a sensibilidade do público e, numa expressiva simbiose entre música e letra, faz ecoar sua voz libertária.
O show começa com a épica “O Drama da Humana Manada”, que narra, através de uma mistura entre samba de breque e metal, o cotidiano dramático do trabalhador urbano do mundo de hoje. Com humor e melancolia, como num samba que agoniza, mas não morre, as vozes de Tomás Rosati e Bruno Danton passeiam com brilho pela saga do operário pós-moderno. Ao final, exaltam a permanência da coragem do espirito humano, que resiste frente à expropriação da energia vital e ao sequestro de tempo realizados pelo capitalismo contemporâneo. Num momento em que o neoliberalismo investe contra os direitos trabalhistas, o cavaquinho (e seus ecos de Mundo Livre S.A.) e as guitarras pesadas do EE juntam-se para questionar: será que você não valia mais do que o mundo da mais-valia diz que você vale?
Apesar de não ter nenhuma relação direta com o rock progressivo, o EE tem como marca registrada um certo formato prog, de onde brotam peças com muitas partes, que apresentam uma longa narrativa, amarrada pela excelência da execução musical e uma aposta em aberturas futuras. Canções como “Drama…”, ”Café”, “O Monge e o Executivo”, “Trovoada” e “Incêndios”, todas do disco novo, seguem este modelo. Nesta última, um punk-rock atravessado por rompantes de metal faz a base para Rosati emular a prosódia de Chico Buarque e lembrar que “não há solução dentro do seu conforto! ”. Em “Café”, é possível notar uma mistura entre o clássico e o joropo (gênero tradicional venezuelano) para se falar do Brasil colonial, monocultor e agroexportador, onde a escravidão dos corpos negros sustenta o modo de vida europeizado dos grandes proprietários de terra. Em “Monge”, um Dub/Hougaku ambientado no Japão e cheio de climas, Thomas Rosati mostra como preceitos orientais ligados à serenidade e à paz de espírito são hipocritamente apropriados pelos homens do mercado financeiro. Aqueles que valorizam a meditação e a yoga são os mesmos que exaurem os recursos humanos, animais e ambientais do planeta em nome de uma caçada eterna orientada pela força maior: o dinheiro…
Apesar da grandiosidade destas canções, o auge do show de lançamento do disco no Rio de Janeiro, por exemplo, foi “Trovoada”, originalmente um afro-beat que acabou por se transformar num jongo. Especialmente pela participação carismática e expressiva de Thiago Kobe, “Trovoada” tem fluidez e intensidade. Além de Kobe, Nina Rosa participa da canção, dando a ela uma condução melódica vibrante, com seu timbre de rainha que narra o recado da nuvem negra que convoca para revolta afro em nome daqueles que tombaram “pela cor”.
Neste momento do disco e do show, o EE se hibridiza e o protagonismo fica com uma vigorosa linha de frente formada por Kobe, Rosa e Cristine Ariel, a nova guitarrista (sempre ovacionada pelo público). Sob o comando dos três, o EE conduz o público por um momento de emoção coletiva. A música cresce quando tocada ao vivo, e naquele contexto, no centro do Rio, leva a plateia a experimentar algo entre o afetivo e o rebelde. Num daqueles momentos em que a mágica da música faz o instante durar, num tempo de beleza e luta. No ápice da canção, entra Ingra da Rosa, a terceira participação, que com seu texto falado e performance explosiva adiciona fúria poética ao momento especial.
Além das experimentações e da política, na mistura do EE cabe sempre alguma dose de humor. Tanto nas letras quanto no material sonoro. Não por acaso, a banda cita os Mamonas Assassinas como uma inspiração, e, por vezes, fornece à sua música intenções circenses. Este recurso ao cômico alivia o peso do discurso político. Assim, a postura crítica em relação às opressões que nascem do convívio comum se articula com uma autocrítica, que lembra que, apesar do tom sério da música de protesto, há de não se levar tão a sério assim. Com isso, o EE escapa de mais uma das armadilhas no caminho daqueles que fazem canções de enfrentamento: a sisudez. Desta forma, o pagode baiano “Carlos e Tereza”, que faz ecoar as histórias de dois revolucionários assassinados pelas elites escravocratas do Brasil, por exemplo, bota um monte de roqueiro vestido de preto para dançar descontraidamente, como num show do Harmonia do Samba.
“Memórias de Fogo” exigiu uma longa jornada para sua realização: três anos para ser produzido e um para ser gravado. Com o auxílio de novos integrantes e de muitos músicos convidados, e com a produção de Tomas Alem e Patrick Laplan, o EE fez de um esforço coletivo um disco clássico. Relativizou a noção de que a autoria de um trabalho artístico é um movimento individual e apostou na perspectiva orquestral da performance musical. Na dimensão revolucionária do fazer-junto. Fazer-junto na música e na luta. Uma música que sabe de onde veio e que não vai esquecer dos que lutaram antes. Para vibrar junto com eles e alimentar o fogo da persistência.
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