O avanço tecnológico que nos proporcionou verdadeiros estúdios audiovisuais em nossos bolsos promoveu também uma verdadeira revolução comportamental, que talvez muitos nem tenham parado para se dar conta da dimensão que tomou. Hoje tudo tem de ser devidamente registrado em nossas câmeras de celular, seja uma festa de arromba, uma viagem, um encontro de amigos, ou até mesmo uma simples cervejinha no boteco.
Há algum tempo, não vai muito longe, uns 14 anos, uma foto, por exemplo, era um acontecimento. Era aquele momento em que todos deveriam parar, se juntar e registrar. Afinal, a câmera usava filme, com uma quantidade limitada a ser usada, não podíamos desperdiçar fotografando bobagem. O advento das câmeras digitais veio no final dos anos 90, mas eram caras demais, apenas alguns sortudos as portavam.
Em shows era possível identificá-los. Entravam sempre escamoteando seus equipamentos, pois na época, era proibida a entrada de câmeras fotográficas e filmadoras, e em alguns cantos podíamos notar aqueles cinegrafistas e fotógrafos amadores que, na era pré-Youtube, faziam a festa dos piratas que vendiam esses vídeos como raridades.
Nos anos 2010, esses “profissionais” já não são mais vistos se posicionando estrategicamente em meio à plateia. Eles são a plateia. Basta o show começar para praticamente todos os braços levantarem um celular para o alto e começar a disparar flashes ou gravar o que se passa no palco. Raros são aqueles que se concentram apenas em absorver a experiência, o que deveria ser a regra uma vez que, no dia seguinte, as fotos oficiais estarão na internet com qualidade muito maior do que da sua câmera.
Então por que não deixar o celular no bolso (tá, como substituto do isqueiro na hora da baladona vale)? Porque hoje, em plena era das redes sociais, se você não registra e publica algo é como se não tivesse acontecido.
Na última semana, o jornalista Dean Goodman que assistiu a 232 shows dos Rolling Stones no mundo todo, fez, a pedido da Folha de São Paulo, uma minicrítica de cada uma das apresentações da Olé Tour, etapa sulamericana da turnê mundial da banda inglesa. O jornalista definiu o show no Rio de Janeiro como “uma convenção de smartphone”.
– É um show dos Rolling Stones ou uma convenção de smartphones? Os brasileiros podem ser belos, mas será que precisam ficar fazendo selfies durante o show inteiro, com as costas para o palco? – relatou. E prosseguiu: – Os fãs descontraídos no Maracanã estão ocupados demais se divertindo para acompanhar as músicas.
O próprio Mick Jagger, dias atrás, em entrevista ao programa Superpop (por acaso apresentado pelo ex-affair e mãe de seu filho, Luciana Gimenez) falou do fenômeno dos celulares no Brasil. O vocalista disse que quando olhou para a plateia na apresentação em São Paulo viu “um mar de celulares” e que “parece que o público paulistano assiste ao show através dos aparelhos”.
Também medalhões do rock dos anos 60, os membros do The Who manifestaram claramente seu descontentamento com o uso excessivo dos aparelhos em seus shows. Em entrevista ao Daily Mail em 2014, o vocalista Roger Daltrey afirmou que acha “estranho” que os fãs fiquem de olho na tela celular enquanto a banda está se apresentando ao vivo.
“Eu sinto pena deles, realmente sinto pena” disse. O guitarrista Pete Townsed complementou: “Se você estava no festival de Glastonbury neste final de semana, espero que tenha curtido a música em vez de tentar desesperadamente conseguir uma boa foto para postar no Facebook”. Townsed reconhece os benefícios dos avanços tecnológicos, mas encara com uma certa preocupação os exageros do público durante manifestações artísticas.
Essa é a questão: muita gente se preocupa tanto em registrar fotos e vídeos que acaba vendo tudo através da tela dos smartphones. Com isso, os shows perdem um pouco em vibração. Os altos preços cobrados recentemente pelos ingressos dos shows também constituem um fator relevante, pois muitas vezes afasta os verdadeiros fãs e dá lugar aos endinheirados portadores de celulares de última geração com câmeras de altíssima definição. E com isso, a experiência de se assistir a um show ao vivo vai se diluindo.
O show é uma comunhão, não é unilateral, do palco para a plateia, é uma via de mão dupla. Uma boa plateia pode fazer de um show uma experiência única, assim como uma plateia fria pode tornar um show meia boca. Deve ser um pouco frustrante para um artista subir no palco e ao invés de ver uma plateia tirando poeira do chão, se deparar com milhares de cinegrafistas apontando seus aparelhos.
Sei que isso é muito improvável, mas alguns shows poderiam proibir a entrada de celulares, como em provas de concurso e algumas festas ultra Vips. Os celulares seriam guardados e você receberia um código correspondente a seu aparelho e o receberia de volta na saída, como um guarda volumes, só que obrigatório. Isso com certeza salvaria a plenitude da experiência dos shows ao vivo.
Pena que não passa de uma utopia saudosista da época em que o máximo de interferência que se tinha nesses eventos era um gigante na sua frente ou uma garota nos ombros do namorado. A despeito dos novos hábitos, concertos continuam sendo mágicos e poderosos, porque, os verdadeiros fãs das bandas e artistas ainda conseguem driblar os altos preços e comparecem para contribuir para que a magia desses momentos não se dissipe.
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