Artista ganha box com gravações ao vivo feitas entre 1977 e 1983. Muitas delas inéditas
Jards Macalé é do tipo de artista que não pode ser ouvido com pouca atenção. Nada nele ou em sua trajetória é óbvio. Por isso, sempre demanda um tempo maior para fazer a crítica de qualquer um de seus discos, ainda mais quando são quatro, sendo três deles inéditos.
O box Jards Macalé ao vivo, lançado pelo selo Discobertas, capitaneado pelo pesquisador Marcelo Fróes, resgata registros históricos como o do show de lançamento do disco Contrastes (1977) e o de uma rara apresentação para os internos do Presídio da Papuda, em Brasília, em 11 de setembro de 1978.
– Esse projeto é decorrência do trabalho no acervo de Macalé. Faltava fazer esse box com shows memoráveis e que conta como ele se afastou das gravadoras e tornou-se independente – explica Fróes.
Os shows
Além dos já citados Contrastes e do show na Papuda, a caixa ainda traz A volta para Vitória, gravado no Teatro Carlos Gomes, em 1981, e o encontro ao vivo em estúdio com o percussionista Naná Vasconcelos (Let´s Play That, de 1983).
Como a maioria dos registros históricos – algumas das gravações vieram do acervo particular de Macalé – a qualidade de som não se compara com a qualidade e importância das performances, o que não importa muito.
Dos quatro shows, o mais interessante é o gravado no Presídio da Papuda (1978), onde Macalé desfila uma série de canções do repertório do também genial Moreira da Silva, com quem excursionava na época. Jards Macalé Canta no Presídio é uma deliciosa, despretensiosa e improvisada homenagem ao mestre do samba de breque. Acertei no Milhar, Olha o Padilha e Sim ou Não, valem deixar de lado qualquer deficiência na qualidade de áudio. Macalé & Cia aparecem em plena forma e aparentam estarem se divertindo em divertir uma plateia nada comum. Os comentários entre as canções são uma debochada viagem, assim como cantar Vara Criminal para os internos. Impagavelmente imperdível!
Contrastes ao Vivo, que marca o lançamento do disco homônimo e foi gravado no Teatro Teresa Rachel, em Copacabana (atual Teatro NET Rio), mostra um Macalé mais sério, porém não menos anárquico e maldito, com suas harmonias complexas e acordes dissonantes e surpreendentes saindo do seu violão. São 22 canções (CD duplo) no formato banquinho e violão, onde o trabalho de edição e masterização realça a qualidade das canções e da ótima interpretação do artista, em um registro bem mais profissional que o captado no presídio.
A Volta para Vitória (1981) ajuda a compor um quadro melódico, louco e lírico de Macalé. Logo na abertura, A Melhor Coisa do Mundo (Jards Macalé/Xico Chaves) é um ótimo exemplo dessa mistura, assim como a ode bossanoviana Chega de Saudade (Antonio Carlos Jobim/Vinicius de Moraes), que fecha o disco. No meio dele, o escrachado samba de breque Tira os Óculos e Recolhe o Homem, parceria de Jards e Moreira da Silva, e que conta a história da prisão de Macalé, anos antes, por ter cantado músicas que não estavam no roteiro dos censores – coisas da ditadura militar.
Estava deitado no meu apartamento
Dormindo tranquilamente
Entregue aos braços de Morfeu
Quando chegou um fariseu…
Um só não, eram uns dez ou vinte, espadaúdos
Homens que davam a impressão
De terreno de dez de frente
Por vinte e quatro de fundos
Que foi dizendo: “levanta que está na hora
A hora é esta, vamo logo, sem demora”
Fiquei atônito e liguei pra Morengueira
Que estava hospedado naquele mesmo hotel
E fui dizendo: “ó Kid, venha cá!
O homem quer me conversar!”
Eu vou cumprir com meu papel
É seu destino, está escrito lá no céu…
A esta altura, pobre do meu coração:
Lá embaixo me esperava, de porta aberta, um camburão
E lá fui eu, com meu irmão Moreira
Fomos cantando, levando na brincadeira…
O CD que fecha a caixa é, talvez, o menos interessante, Let’s Play That. Não pela sua qualidade, mas por já ter sido lançado em 1994, apesar de ter sido gravado em 1983, num climão de jam session no estúdio, entre Macalé e o percussionista Naná Vasconcelos (1944-2016). Nesse registro a qualidade de som é impecável e os desempenhos inspirados, tudo bancado por um dos sócios do Ponto Frio! Uma história estranha para um disco que merecia mesmo ser (re)descoberto.
– Eu e o Naná sempre quisemos gravar um disco juntos. Eu o conheci em “Gotham City“, no Maracanãzinho; a gente estava ensaiando, tal e coisa, aí de repente, de cima do palco eu olhei e vi, tinha aquele cara ali, já fazendo percussão: “Posso entrar nessa?”. Eu disse: “Esteja à vontade”. Foi aí que nós nos conhecemos e fizemos uma grande amizade – revela Macalé.
Let’s Play That traz composições solo e parcerias com Xico Chaves, Jorge Mautner e Fausto Nilo, entre outros. A excelência dos músicos é genialmente espalhada pelas dez faixas do álbum. Mais uma vez a elegância dissonante de Macalé se faz protagonista, dessa vez com a luxuosa companhia da percussão louca de Naná Vasconcelos. O disco é tão diferente que talvez a música menos diferente se chame Estranha (Jards Macalé/Xico Chaves).
Quando eu nasci
Um anjo louco
Um anjo solto
Um anjo torto, muito
Veio ler a minha mão
Não era um anjo barroco
Era um anjo muito solto, solto, solto
Doido, doido
Com asas de avião
E eis que o anjo me disse
Apertando a minha mão
Entre o sorriso de dente
Vá, bicho, desafinar o coro dos contentes
Let’s play that
Para ouvir com atenção e reverência
Jards Macalé ao Vivo reúne 53 faixas que abraçam um período dos mais ricos na trajetória de um dos artistas mais inquietos e criativos da nossa música. Os shows contidos nessa caixa são daquelas obras para serem ouvidas com atenção, reverência e muito respeito. Como já citei, a qualidade de som pode não ser 100% perfeita, mas isso acaba dando um charme e valor ainda maiores aos registros.
PS: Macalé é um apelido dado por conta da falta de habilidade do jovem Jards no futebol. Os amigos o comparavam a um jogador do Botafogo chamado Macalé, que podia jogar muito ou ser o perna de pau das partidas. No caso de Jards, na maioria das vezes, o perna de pau.