Até o último dia, parecia que o tempo ia atrapalhar. Mas nem a chuva apareceu e nem o sol castigou o público nas mais de 12hs de música do Queremos Festival, que rolou no último dia 25/8. O evento, organizado pela principal produtora de shows da cena indie no RJ, ocorreu na Marina da Gloria, no Aterro do Flamengo, na Zona Sul do Rio de Janeiro, num lugar exuberante, ao ar livre, ao lado da baia de Guanabara, e reuniu mais de 6 mil pessoas.
Alternados em dois palcos, diversos artistas tocaram sem intervalo para uma plateia que não gastava mais de 1 minuto para ir de um show a outro. Se você se cansasse, poderia descansar as pernas nos Redários. Se quisesse comer, poderia escolher entre diversos bons foodtrucks, caros como sempre, mas com boa comida e bebida. Vários sons gringos rolaram como Father John Misty, Cut Copy e Animal Collective, mas eu fui mesmo ver os artistas brasileiros.
Praticamente sem atraso, os shows ocorreram sem problemas técnicos. E começaram cedo. Depois de um set inicial do DJ Nepal, Letrux entrou no palco às 14h45 e abriu os trabalhos com muita personalidade, enfrentando o desafio de ser a primeira banda do evento, fazendo música enquanto as pessoas ainda chegavam. Mas um público consistente estava lá antes mesmo das 15h para vê-la, e isso num evento que ia até as 2h. Muito à vontade no palco, Letícia Novaes comandou mais uma apresentação do seu excelente disco “Letrux em noite de Climão”, gravado a partir de um crowdfunding em 2017. Ao lado de sua banda afiada, Leticia fez vibrar o público naquele início da tarde, mesmo com canções carregadas de narrativas sentimentais, espirituais e energéticas, aventuras boêmias e auto-ironiais inteligentes mais afeitas a um clima de pista.
Como eu já havia atestado em julho, numa noite de ingressos esgotados no Circo Voador, Leticia está num momento mágico da carreira. Precisa como cantora, seu trabalho definitivamente estourou a bolha indie em torno da qual o Letuce, seu trabalho anterior, orbitava, e vem se tornando cada vez mais conhecido. Sua onda evoca estéticas dos anos 1980 e 1990, com muitos sintetizadores e programações eletrônicas, e um discurso feminista pós-gênero que ela e a banda costuram com propriedade. Com 1,83 metros de altura, Leticia está grandiosa no palco, segura nas linguagens do corpo (sua performance impacta com cabelos, danças e figurinos) e da poesia (sua comunicação com o público entre uma música e outra ou apresentando seus músicos é sempre carismática, além da sagacidade das letras). Na intensamente íntima “5 Years Old”, ela conversa poeticamente com a plateia, enquanto executa a canção sozinha no palco e consegue fazer a música operar como uma forma superior de comunicação sensível. O show acelera os batimentos especialmente em sua parte final, e faz a energia circular com o poderoso quase-punk “Que Estrago”, a ritualística “Hypnotized”, a sublime “Flerte Revival” e o maior sucesso “Noite Estranha, Geral Sentiu”.
Logo depois de Letrux, Rubel entrou no palco. A vibe do lugar estava no climão deixado por Leticia e banda. Portanto, o jovem talento revelado na internet através do disco Pearl, um ótimo primeiro álbum gravado meio na raça, teve a responsabilidade de conduzir a aura do evento a partir daquele momento. Rubel fez isso apostando no seu indie folk à la Bon Iver e Edward Sharpe com tons de Caetano Veloso. Ele é bom compositor e letrista e está criando espaço na cena tocando no Brasil todo com seu timbre pós-Marcelo Camelo, mas foi difícil dar conta daquele público todo, naquele dia, naquele contexto.
Às vezes disperso, o show foi calmo, mas com alguns momentos elevados, de comunhão, como em “Partilhar”. Rubel preparou para uma de suas melhores canções uma performance solo – “folk roots”. Mas executar na voz e violão a delicada “O velho e o mar” é tarefa árdua. Fazer uma música, bela e suave como esta, navegar em oceano aberto num espaço daquele tamanho é muito difícil. Alguma coisa se perdeu ali. Com a banda completa, todos de branco, numa formação com violão, baixo, bateria, teclados e naipe de metais, no melhor estilo Los Hermanos, Rubel fez ainda “Tocando em frente”, canção de Almir Sater, para atrair um público mais amplo. Arriscou-se também com uma versão meio Bill Withers, meio Jorge Ben, para seu maior sucesso “Quando bate aquela saudade”. Este parece ser um caminho que ele quer seguir. Seu disco novo, lançado neste ano, “Casas”, consegue combinar com destreza sua MPB-folk de violão de náilon e suas sombras de Dylan com elementos do Hip Hop de artistas como Frank Ocean e Chance, The Rapper.
Depois de Rubel, Xênia França, ex-integrante do grupo Aláfia, subiu ao palco para apresentar seu disco homônimo de 2017. Nascida na Bahia e radicada em São Paulo, Xênia apostou que muitos ali não a conheciam e fez tudo para conquistar a atenção de um público que já começava a lotar e se espalhar pelo descampado da Marina da Gloria. A tarde caía e a lua cheia delineava a chegada da noite quando a cantora abriu o show com sua música mais conhecida “Por Que Me Chamas?” na qual já apresenta o coração de seu discurso musical, muito associado à herança afro nas Américas pós escravização.
O trabalho de Xênia é pop e carrega elementos dos diversos desmembramentos da música soul norte americana, com reverberações de Stevie Wonder, James Brown, Whitney Houston e Michael Jackson. Embaralha isso com instrumentos característicos da Santeira Cubana e camadas oriundas de uma MPB mais negra, de Gil, Djavan e Milton. Aposta, assim, num elegante encontro entre diversas músicas diaspóricas, com os pés fincados na Bahia, de Maragareth Menezes e Olodum. Ótima cantora e fã de Alcione, Elza, Lecy e Emilio Santiago, Xênia, com sua presença feminina e sua mensagem de valorização das subjetividades negras emula a figura de Maya Angelou. Me lembrei de Erykah Badu também. Nos melhores momentos, fez aquele palco querer ser o palco do AfroPunk, festival que nasceu no Brooklyn, em NY.
Combativa e inteligente na sua afirmação da negritude em entrevistas, Xênia foi, neste show, mais esotérica do que política. Com a sustentação de uma banda classuda, afirmou a potência transcendental da arte, quando em “Preta YaYa, cantou: “Musica preta sou seu instrumento vim pra te servir”. Tendo a música como mãe, professora e bússola, o trabalho de Xênia elogia o enraizamento da ancestralidade, os que vieram antes, e aposta em canções do suavemente estrondoso Tiganá Santana, num cover de Antônio Carlos e Jocafi (Teresa Guerreira), e homenageia o gigante Chico César, em “Respeitem meus cabelos, brancos”, um dos pontos altos do show. Coroada por um cabelo arrebatadoramente grandioso, a canção exige que deixem “a madeixa balançar”. Como uma leoa que dança em temperatura jazzy, Xênia pode dar passos expressivos na direção de uma estética afro futurista brasileira.
Já no início da noite, o Boogarins entrou no palco, com seu clima vapor waves, suas guitarras mântricas, bêbadas de phaser, espalhando um oxigênio onírico pelo ar. O céu foi tomado pelo “rosa” da iluminação do palco e o ânimo de um público que conhecia bem o trabalho da banda ajudou a compor a ambiência sinestésica. Oriundo de Goiás, invariavelmente lembrada como terra do sertanejo, onde, porém, há uma relevante cena de rock, o Boogarins faz, segundo eles próprios, um rock “progressista”. E tem nos seus timbres alucinatórios e nas frases delirantes e existencialistas dos vocais aprazíveis de Dinho Almeida alguns de seus trunfos. São recortes, sobreposições e ambientações que produzem um material sonoro ultra sensorial de texturas circulares e muito reverb, que gera a sensação de se ouvir vozes dentro da mente. Como num sonho. Ou na definição psiquiátrica de “psicodelia” como “o que revela a mente”. Uma agradável confusão mental gerada por uma flor lisérgica que repetiu sem parar: “Se eles dizem que são fortes, eu abro o peito digo que também sou”.
Apesar de ser do entorno de Goiânia, o Boogarins poderia ser europeu ou norte-americano. Seu som é contemporâneo com o que ocorre no Norte Global, e seu sucesso meteórico ilustra isso. Com apenas cinco anos de existência, já fizeram duas turnês nos EUA, participaram do South by Southwest, foram indicados ao Grammy Latino e receberam elogios do NY Times. Com um rock dançante, o Boogarins é um terço hippie, um terço indie, um terço alucinógeno e lembra um Tame Impala com Mutantes e Ave Sangria, mas com uma voz em português que cai bem num som que é ao mesmo tempo negro e branco. Herdeiro longínquo dos vocais caleidoscópicos dos Sgt. Peppers, a banda fez um show com clima pop e despretensioso, e animou o público que dançou no beat sólido proporcionado pela mão pesada do baterista Ynaiã Bethroldo, ex- Macaco Bong.
Quando oito horas de música já tinham se passado e o clima de noitada estava instalado, Rincon Sapiência entrou no palco. Com seu rap tocado por banda, no melhor estilo Instituto e The Roots, Rincon apresentou seu trabalho centrado no disco “Galanga Livre”, que hibridiza o rap com signos do rock africano vindo do Mali, Gana e Benin, com o afro beat e outras músicas do Atlântico Negro. Rincon gosta de batizar seu som como “afro rep” e cria narrativas que remetem a um continente africano antes da invasão europeia. Uma terra de monarquias e impérios, de reis como manicongo (como o rapper se apelidou) e rainhas como Nzinga. A partir de uma viagem ao Senegal e à Mauritânia, Rincon decidiu deixar-se influenciar intensamente pelas diversas estéticas africanas. Sua música opera como remédio e ambiciona um traço afro, tanto no timbre da voz e nos samples (como em fragmentos de berinbau, ladainhas de capoeira e cirandas), quanto no figurino.
Exímio contador de histórias, Rincon é elogiado por Black Alien e Mano Brown como rapper e sua verve trovadora lembra a de um griot, figura responsável pela guarda da tradição oral na África Ocidental. Ele que já fez teatro e curtia o pagode dos anos 1990 é, definitivamente, um Mc acima da média. No show, é preciso estar atento para ouvir as letras de seus raps, que citam técnicos de futebol, fragmentos de relacionamentos amorosos, e ícones da cultura de massa. Sua presença no palco encarna uma faceta fashion sem perder o que chama de “maloqueragem do rap”. Sua poesia é bélica apesar de bem-humorada. Sua canela é fina, mas sua palavra é munição pesada, como um rei Momo. Elegante no enfrentamento, em “Crime Bárbaro”, Rincon refaz a história do Brasil ao criar a ambiência da fuga de um ex-escravo, revolucionário, que, depois de matar o senhor de engenho, experimenta sensação de poder. Em “Ostentação à pobreza”, as frequências graves fizeram o corpo do público tremer e abriram espaço para citações a funks contemporâneos como “Bololo Haha”, de Mc Bin Laden ou “Automaticamente“, de MC Maromba.
O Baiana System entrou no palco quase às 00h, como a principal atração brasileira do Festival. Boa parte do público estava lá para ver a banda da “terra mãe” do Brasil, polo de produção incessante de música poderosa, cujo show é frequentemente apontado como um dos melhores do país hoje. O grave do Baiana é pesado demais, inspirado ao mesmo tempo no Sound System jamaicanos e nos trios elétricos de Salvador, e parece que mexe com os órgãos dentro dos corpos dos ouvintes, que não tem o que fazer a não ser dançar e entrar no movimento intenso das imensas rodas que se abrem na plateia. Como um ritual tribal urbano, inevitavelmente atravessado pela cultura pop, aquela música acontece a partir de uma alquimia entre Dub, Trap, Pagode Baiano e Samba Reggae. Temperados por uma Guitarra Baiana que mais parece uma guitarra africana.
Com suas bases eletrônicas, um percussionista “orgânico”, e mais uma guitarra, várias vezes roqueira, o Baiana é resultado de muita pesquisa de seus integrantes, que enxergam nas colagens, remixes e ressignificações das suas próprias criações um caminho estético virtuoso. O que o vocalista Russo Passapusso chama de “efeito pangeia” – um vetor de integração estética de Salvador com o resto do mundo. O sistema do Baiana é também esse: um mecanismo de hibridação dos diferentes universos musicais de onde vêm cada um de seus membros, o que possibilita que Kuduro, Ijexá e Cumbia se transformem numa música que é cada vez mais popular, como as sonoridades que Rihana frequentemente vai buscar no dancehall jamaicano. Parece que agora os baianos estão fazendo o que os pernambucanos fizeram na gênese do Mangue Beat.
O trabalho do Baiana nasceu muito em contato com a rua, em experimentações no Pelourinho. Numa interação de pergunta e resposta entre artistas e público. Por isso, Russo Passsapusso estava muito confortável no palco do Queremos, onde puxou um “Lula Livre” e repetiu o viralizado Fora Temer”, ao comandar a banda que já foi definida como um “navio pirata”. Passapusso faz um rap com melodias criativas e pinta de toast jamaicano. Uma fala sinuosa e da rua em cima de um groove arrastado. Nesta comunicação, as rodas são fundamentais. Abrem-se clarões na plateia que devem ser cobertos de gente em movimento quando o beat da banda chega no seu auge. No festival, apesar dos neófitos que não sabiam exatamente esperar o comando da banda, as rodas cumpriram seu papel catártico e impressionaram os que não conheciam o ritual que acompanha o Baiana onde quer que ele vá.
ñ conheço ninguém que aguentou até o final =P
a música brasileira vive seu melhor momento desde a tropicália
Ótimo artigo!