Para qualquer ouvido interessado na música independente contemporânea, uma verdade: é impossível permanecer incólume ao som do Metá Metá. Correndo por fora dos modos hegemônicos de distribuição, o trio formado por Kiko Dinucci (guitarra e voz), Juçara Marçal (voz) e Thiago França (saxofone e flauta transversa) e frequentemente acompanhado por Marcelo Cabral (baixo) e Sergio Machado (bateria) se consolidou como a experiência sonora mais impressionante surgida no Brasil na primeira metade da década, distribuindo seus discos gratuitamente pela rede, além da venda dos discos físicos de modo independente, construindo um público fiel e se aliando a outros músicos engajados nessa luta.
Desafiando qualquer classificação de gênero, a banda desenvolveu seu som a partir da mescla entre o gene africano que permeia os ritmos brasileiros, a poesia torta transformada em canção de vanguarda por mestres como Itamar Assumpção e Luiz Tatit no final do século passado e os timbres e acordes distorcidos do metal e do punk (de Black Sabbath a Dead Kennedys, passando necessariamente por Nação Zumbi e Sepultura); letras misturando português e iorubá embaladas pelo peso do noise. Foi partindo da consolidação do poder desse som que o Metá adentrou a segunda metade de uma década brilhante da música brasileira ao lançar a turnê de MM3, seu terceiro disco, na última sexta-feira (10/6) no palco do Circo Voador, com a segurança de um projeto bem sucedido em conquistar seu público por sua ousadia e sua presença ao vivo.
Gravado durante três dias de março deste ano e disponibilizado na web de surpresa no dia 26 de maio, MM3 é o primeiro grande lançamento do Metá (descontando um EP de três faixas no ano passado) após quatro anos promovendo o seu segundo disco, Metal Metal (2012), o primeiro com Cabral e Machado, em paralelo aos shows em trio, que priorizam o álbum de estréia homônimo(2011). Esses anos de passagem do repertório por palcos no Brasil e no resto do planeta talvez ajudem a explicar a derrubada por excesso de acessos do servidor do site da banda algumas horas depois do link para o disco “cair” na rede. Já essa tal procura além das expectativas talvez possa explicar a familiaridade e a receptividade dos presentes ao repertório novo, quinze dias após o seu lançamento.
Naquela noite gelada do outono carioca, o grupo incendiou a platéia desde o momento e que pisou no palco até o final do segundo bis, exigido por demanda popular. Pareciam retornar ao Rio ainda quentes da apresentação memorável que dividiram com o pernambucano Siba na casa da Lapa em setembro. Ao abrir a set list com faixas tão singulares em sua forma, mas todas indissociaveis do resto da linguagem do grupo, como o canto de fé Mano Légua, o pós-punk furioso Angoulême e o surrealismo poético de Imagem do Amor – cuja melodia remete a um híbrido tumultuoso entre as origens do grunge e a música moura norte-africana – o show pôs a prova o sucesso de MM3 nos quinze dias entre a sua estreia e a sua apresentação oficial.
A consagração dessa comunhão já estabelecida entre intérpretes e e espectadores veio logo após a primeira leva de músicas novas, ao soar dos primeiros acordes percussivos de Exu, faixa de abertura de Metal Metal, pela guitarra de Kiko. Repetindo a plenos pulmões os versos iorubás entoados por Juçara, a plateia do circo acolhia o repertório antigo como quem recita um clássico da música popular. Mas, ao invés de sustentarem seus sucessos nessa intimidade já estabelecida, os arranjos vieram mais soltos, com amplo espaço para improviso dos músicos, em especial para o fraseado assombroso do saxofone de França, e para a exploração ainda mais extensa das distorções e dissonâncias de cada um. Sem se bastar em colher os louros da estrada percorrida, o Metá demonstra um esforço em desconstruir e expandir seu trabalho passado, reenergizando as canções e as adaptando à atmosfera do novo espetáculo.
Em mais de duas horas de apresentação, o grupo não só passeou por todo o repertório de seus dois últimos álbuns, como ainda achou espaço para contemplar pérolas do resto da discografia como as versões para Vale do Jucá – de Siba, que também participa de MM3 ao assinar Toque Certeiro em parceria com Kiko Dinucci – e Me Perco Nesse Tempo – clássico das Mercenárias, banda seminal do punk paulistano da década de 80. Mas o clima de celebração não bastava para o momento, ou para as arestas definitivamente mais afiadas do novo trabalho. Ilustrações de Dinucci declarando o repúdio ao presidente interino Michel Temer e clamando a desobediência ao governo ilegítimo foram projetadas sobre a banda durante o espetáculo. Mais do que se enquadrar na pecha de um discurso político, as imagens acompanhando os decibéis atingidos pelos amplificadores do Circo trouxeram à tona uma urgência inerente ao som do Metá, a dissonância como arma do rito, o ruído originário como evocação de resistência, o barulho, o batuque, o berro, ferramentas de luta no chamamento contra o sufoco das angústias de um povo refém do cabresto da política institucional.
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