Modernizar e desconstruir a visão estereotipada do que é a musicalidade da Amazônia e o que é crescer em Manaus é o que a banda República Popular busca no álbum duplo “Húmus”. Terceiro e mais ousado disco do grupo, o trabalho é uma reconexão com suas raízes. O projeto já está disponível em todas as plataformas de música digital via Sagitta Records.
O álbum duplo se apropria de ritmos como a toada do Boi de Parintins e o carimbó. República Popular faz surgir uma mescla urbana e contemporânea que traz frescor à sua própria concepção sonora: os tons do indie rock somados à música brasileira que sempre foram associados às suas canções solares ganham novos instrumentos, arranjos e convidados especiais. À veia pop do grupo, soma-se experimentalismo e psicodelia.
“Achamos que ‘Húmus’, com todos seus requintes eletrônicos, pode sim ser considerado um disco de música regional amazonense”, comenta Igor Lobo, que assume violão e vocais. Além dele, a banda é formada por Viktor Judah (vocal e bateria), Vinítius Salomão (vocal e guitarra) e Sérgio Leônidas (vocal e baixo).
O novo trabalho inaugura um ciclo para a República Popular. A banda formada por amigos de escola deu início à sua discografia em 2015, quando gravou seu disco de estreia, “Aberto para Balanço”. 2016 trouxe o EP “Lis”, com letras inspiradas por personagens femininas. Já em 2017, os músicos começaram a revelar o que viria a ser “Húmus”, com a estreia do elogiado clipe “Curió”. Animado pela ilustradora Bianca Mól (autora do livro “Contos de Papel” e conhecida pelo canal de YouTube Garota Desdobrável), o vídeo entregou o compromisso da República Popular em contar histórias com suas novas canções.
Os clipes seguintes, “NVMFDA (Não vem me falar de amor)” e “Somo2”, faixas da segunda parte do álbum duplo, reafirmaram a República Popular enquanto banda manauara. O primeiro, em estética lo-fi, mostra os músicos ornados com pintura facial, remetendo à cultura indígena; e o último foi gravado em pleno palco do Teatro Amazonas.
A transição para “Húmus” faz referência à ideia de início e fim dos ciclos da vida, tão presente nas letras do trabalho. Nada mais natural que traduzir isso no título, batizando o disco com o tipo de solo mais fértil, formado a partir da decomposição de animais e plantas. Da morte, surge a vida. E do fim de uma era para a República Popular, nasce uma banda ainda mais conectada às suas heranças culturais.
“Queríamos que nosso segundo disco fosse uma homenagem ao Amazonas, mas não expressar isso literalmente. Que fosse um retrato da vida contemporânea aqui, nas letras e nos arranjos. Em determinado momento, percebemos que, morando aqui na maior floresta tropical do mundo, não tínhamos como não trazer isso para as músicas. O amor a sua terra natal é um sentimento muito carregado de legado, de passagem entre gerações, então falar como ciclo da vida cabe como uma luva quando falamos sobre nosso Estado”, analisa Vinítius. Traduzindo visualmente essas inspirações e contrastes, a banda apresentou seus dois novos clipes, “Amazônida”, ligado às raízes da cultura manauara; e “Citadina”, urbano e moderno.
Para construir todo esse mosaico, a República Popular convocou a ajuda de parceiros locais e até mesmo de outro estado, como é o caso do clipe de “Amazônida”. A faixa abre o disco e conta com a participação de David Assayag, cantor renomado de Parintins. “Toada do Amanhã” traz a voz de Arlindo Junior, embaixador da cultura parintinense, conhecido como “Pop da Selva”. Já em “Deus”, a cantora Márcia Novo empresta sua voz já reconhecida nacionalmente como representante do cenário pop de Parintins. Por fim, “Ti Tuí” traz a participação de Renata Martins. O disco foi produzido pelo baterista Viktor Judah e entrega uma República Popular profundamente conectada com suas raízes – mas sem abrir mão de olhar para o futuro.
“O primeiro álbum é florestal, grandioso, épico, verde. Este segundo é cinza, intimista, pequeno, urbano. As canções da parte I são conectadas por ambiências e paisagens sonoras, é um disco sólido e unitário. A parte II tem músicas mais distintas, sem conexão e sem muitas paisagens, é um daqueles discos cujas faixas parecem ser de álbuns ou artistas diferentes. A pluralidade sonora de ambas as partes é igualmente rica, mas na segunda, há um caos calculado. Isso se deve à nossa visão de como retratar a cidade, multifacetada, ilógica e inconstante”, explica Judah, responsável pela produção musical do álbum.
Para 2019, a República Popular planeja uma turnê de lançamento e a gravação do DVD do projeto no Teatro Amazonas, no coração de Manaus.
Crédito: Lauren Lauschner
Tracklist:
Disco 1:
1 – Amazônida (part. David Assayag)
2 – Curió
3 – 2& Só
4 – Toada do Amanhã (part. Arlindo Junior)
5 – Deus (part. Márcia Novo)
6 – A Canoa
7 – Carmesim
8 – Ti Tuí (part. Renata Martins)
9 – Revel
10 – Réquiem
11 – Pra Trazer À Vida Cor
12 – Verde Coração
Disco 2:
1 – Citadina
2 – Um Dia Sem Cor
3 – Comunidade RP
4 – Sambadela
5 – Somo2
6 – NVMFDA
7 – Mercúrio
8 – Bumerangue
9 – A Janela
10 – Fórmula de Compasso
11 – K7 (part. Gabi Farias)
12 – Terrassol
13 – Húmus
FICHA TÉCNICA
Produzido por Viktor Judah
Gravado e mixado por Viktor Judah (Manaus, AM)
Masterizado por Fernando Sanches – Estúdio El Rocha (São Paulo, SP)
Construção tipográfica da capa por Dylan Ranna
Fotografia da capa por Keila Serruya
Performance da personagem “Uyra Sodoma” por Emerson Munduruku
Direitos de uso e reprodução da fotografia adquiridos dos autores
Gravação adicional de teclados por Elifranck Gouvêa na faixa “Verde Coração”
Gravação adicional de cavaco por Nenê Martins na faixa “Sambadela”, backing vocal por Pedro Prestes na faixa “Somos2”
FAIXA-A-FAIXA
DISCO 1:
1 – Amazônida
Igor Lobo: Amazônida foi o resultado da primeira brainstorm sobre o que poderia ser o novo trabalho da República Popular. Após APB e Lis, entendemos o rumo que naturalmente as ideias vinham tomando. Então, logo de cara, posso dizer que escrever Amazônida, ainda que soe como um trocadilho, foi puramente natural e orgânico. Eu precisava, de alguma maneira, encaixar “orgânico por inteiro” em alguma canção, depois de uma noite inteira sonhando com alguém quase que me intimando a fazer isso. A figura típica do caboclo singrador de rios surge instintivamente, uma vez que as raízes nos levam pra isso. Dessa figura, parte o desejo infindável de tornar o mundo mais amazônico em suas cores, causas, pluralidade. Gravar a canção foi dar vida e atmosfera a esses versos. Dentro do seu próprio universo, colocar voz e acordes foi milimetricamente alinhar a mensagem com a identidade sonora que pensamos. Apesar de não ter sido a primeira faixa a ser gravada, pra mim, pelo o que essa música representa, no seu processo de gravação começou a minha aventura pelo Húmus.
2 – Curió
Igor Lobo: Curió é o sentimento de percepção amorosa sobre as relações. Escrever ‘Curió’, após ‘Amazônida’, já imerso no roteiro pré-definido, foi entender milhões de histórias interpessoais dentro da minha própria história. Retratar todas as formas de amor, com base no que eu entendo por ser amor, na forma de um curió me pareceu conveniente. Além da sonoridade interessante da palavra ‘curió’ pra ser um nome, o próprio passarinho foi um símbolo de aconchego na minha infância. O mesmo aconchego que encontrei na minha vida e muitas vezes presenciei na vida de outras pessoas. Portanto, nada mais adequado. A gravação da canção foi complementar ao que eu havia idealizado quando compus a música. Preciso salientar que eu sou grato imensamente por ter encontrado cada um dos integrantes da RP, porque os meninos têm a capacidade de captar a minha imaginação de uma forma que mesmo eu não consigo externar. Isso ficou claro quando fomos pro estúdio (ou melhor, guarda-roupas) e eles só me puxaram pelo braço: “grava depois senta aqui”. O resto é história, música e amor.
3 – 2& Só
Igor Lobo: 2&só é uma redenção emocional. Basicamente isso. É uma canção que significou um divisor de águas pessoal e, num primeiro momento, eu não a via como parte do Húmus. A letra retrata uma tentativa, sem sucesso, de impedimento do amor acontecer. Em seguida, retrata a volta à tona, o ressurgimento, a reinvenção. Curiosamente, essa é, inclusive, a história da própria música, pelo menos na minha cabeça… Digo isso, porque já algumas vezes vetei (sozinho, diga-se de passagem) a presença de algumas músicas em nossos trabalhos. Todas elas fizeram parte mesmo assim. Portanto, ter escrito 2&só foi (mais) uma forma de me convencer de que é possível resgatar o ato de amar, trazendo-o de volta à tona. As gravações dessa música, em especial vieram pra, de fato, esfregar isso na minha cara. O xote psicodélico arrebata, nem sequer senti como uma música minha, o que pra mim é algo positivo, sinto como se ganhasse vida própria. Dessa forma, 2&só emergiu, surpreendeu (a mim) e consta no meu catálogo pessoal de composições das quais tenho orgulho. Sorria, enfim, passou.
4 – Toada do Amanhã
Viktor Judah: Essa música eu compus originalmente pra ser uma Toada de raiz, que enaltecesse o próprio gênero da toada e do Boi-Bumbá de Parintins. Na letra, falamos sobre o fenômeno do boi nos anos 90, que foi algo jamais visto na música popular amazonense antes, chegando a ultrapassar as fronteiras do Brasil, levando os artistas daqui para turnês na Europa. Foi um período áureo. Durante a produção, as músicas já estavam tomando um caráter mais eletrônico e experimental. Então surgiu a ideia de não seguir a linha tradicional. “E se fizéssemos uma toada eletrônica? Se ao invés de cantos tribais, vocoders? No lugar da batucada e da marujada, Beats eletrônicos e drummachines?” foi o pensamento que ajudou a formatar a música.
5 – Deus
Vinítius Salomão: A primeira ideia dessa música surgiu para mim quando, em algumas conversas informais, mencionamos que seria interessante o álbum conter uma opereta. Logo de cara, já imaginei uma performance dividida em vários atos. Seria algo grandioso e pretensioso, então o conceito “Deus” vinha bem a calhar. Conforme comecei a escrever melodias e versos, as divisões musicais e líricas foram se desenhando de modo natural, de forma que as mudanças dos atos se tornaram bem evidentes, mas ainda coesas. Com o passar do tempo e outras músicas chegando para compor o setlist, percebemos que a abordagem da mini ópera poderia, na verdade, acabar se tornando enfadonha e desinteressante. Dessa forma, enxuguei o que tínhamos até então e escolhi o que tinha de melhor em cada ato para dar corpo à canção final, agora com sutis transações. A linguagem da música é fruto de histórias que ouço desde pequeno e de minhas passagens pelo interior do Estado. Da prece cabocla ao beiradão repleto de beats e sintetizadores, “Deus” exalta a cultura popular amazonense através do sincretismo religioso que toma nossa região, seja no folclore das matas ou nas festas da cidade.
6 – A Canoa
Viktor Judah: Eu tinha esse dedilhado no violão guardado há uns anos, me faltava uma letra. Bastou um fim de semana no interior, remando muito e passando pela frente das casas na beira do rio pra que a inspiração viesse. Pensei nas pessoas que não conheceram outra vida, senão aquela. Pra muita gente, esse é o único universo que existe, cercado de verde e tirando sustento do rio. A canoa foi a metáfora para a morte, que busca tudo que foi aprendido ali, pra levar a outro lugar. Compus a música pensando na voz do Sérgio, ele tem um tom e um timbre que deram peso na letra, uma melancolia grave que pra mim tem tudo a ver com a canção. A música em si começa com uma vibe bucólica e tranquila, que flerta com um xote nos primeiros refrões, mas culmina num rock psicodélico bem Brasil dos anos 60.
7 – Carmesim
Vinítius Salomão: Essa música foi a última a ser composta e gravada, mas talvez seja a minha favorita, mesmo eu achando que poucas pessoas talvez se identifiquem. Surgiu em um estalo numa noite quando já havíamos fechado o repertório completo do disco. A forma como comecei a tocá-la e cantarolá-la foi como se estivesse reproduzindo uma canção que já existia. Gravei uma demo na mesma noite e mandei para os meninos que toparam fazer essa inclusão no setlist. Da mesma maneira que harmonia e melodia me atingiram como um soco, assim foi também com a inspiração lírica. Sempre senti no meu íntimo o desejo de levar o nome do Amazonas para fora, para que muitos conheçam o que nós conhecemos de perto e apreciem toda a riqueza do Estado. Eu estava muito longe de casa quando a escrevi e me senti como o interlocutor narrando o sonho de um menino baré que nasceu, cresceu, lutou e esperou. O sonho é a via que o leva do Amazonas para o mundo e sua pele, carmesim, é o que o traz de volta pra casa.
8 – Ti Tuí
Vinítius Salomão: Ti Tuí é um canto apaixonado de duas notas. Essa canção é bem pessoal para mim, e fala de um período de muitas incertezas e dúvidas na minha vida, principalmente com relação à banda e nosso propósito. Essa música chegou a ter algumas versões diferentes, mas a versão final faz uma síntese do que foi o chamado da arte na minha existência e como isso ditou muito das minhas decisões sem sequer eu perceber. Chamei a Renata Martins, de quem eu sou fã declarado, para cantar comigo e ela topou na hora, deixando o resultado incrível, melhor do que tudo que imaginei.
9 – Revel
Viktor Judah: Essa, particularmente, é minha composição favorita. Escrevi num momento de profunda tristeza, em que só tinha a mim mesmo com quem contar. Todos nós passamos por uma dessas um dia, então “Revel” é um recado do eu-lírico para si mesmo. Apesar de estar na parte 1 do disco, que promete uma sonoridade mais regional amazonense, essa música acabou caminhando para um peso bem rock and roll. Acho que conseguimos compensar isso utilizando de percussão e de flautas. O swing dos refrões também quebra esse clima, especialmente o primeiro, que chega a lembrar a pegada dos Novos Baianos. Há um momento de tensão, no meio da música, que foi uma ideia bem interessante, com intuito de construir um clima totalmente negativo e sombrio, que vai crescendo e ficando mais cheio de barulhos sinistros, mas quando essa parte escurece ao máximo, explode numa parte harmônica e vibrante, cantando que “você tem que persistir”. É literalmente a beleza da música esmagando o clima de negatividade.
10 – Réquiem
Vinítius Salomão: Essa, em particular, talvez seja a mais bizarra e amarga do disco inteiro. Fico feliz de uma música assim ter espaço em um trabalho nosso, visto que somos lembrados mais pelas baladas “good vibes”. “Réquiem” foi a primeira canção que escrevi longe de casa e a concebi num momento de extrema solidão e melancolia. Ao mesmo tempo que ela veio em um momento de dor, ela também foi redenção. Ela pode passar a impressão de que fala sobre um romance, mas não é necessariamente isso. Há muitos conflitos dentro de nós, alguns até que carregamos por anos, consequências de traumas que não aprendemos a superar. Chega uma hora que precisamos revirar esses sentimentos obscuros e concedê-los o devido fim. O refrão sufocado, mudo, vai ganhando peso conforme o sentimento é confrontado até fazer emergir a voz conformada de aceitação. O fim não precisa ser feliz, você apenas tem que aceitá-lo e achar uma forma de conviver bem com isso.
11 – Pra Trazer À Vida Cor
Viktor Judah: Essa é interessante. Tinha tudo pra ser uma canção curta, de 2 a 3 minutos de duração, mas enquanto produzíamos o disco, pessoas próximas de nós enchiam nossos ouvidos de alertas sobre o “risco da megalomania” prejudicar a recepção do álbum. Essa faixa acabou sofrendo o efeito colateral inverso. No auge das experimentações, comecei a seguir a música adiante sem ligar pra métrica, apenas dando um passeio por onde conseguisse passar com ela. Visitamos várias levadas da música brasileira durante esses 7 minutos e meio, utilizando mais uma vez das baterias eletrônicas, dos vocoders e sintetizadores pra tentar criar algo regional-contemporâneo. Talvez ela possa ser vista como um recado de “não estamos ligando muito pra recepção das músicas, não nesse disco, queremos apenas fazer o que der na telha”. Fiquei muito feliz de ter feito essa faixa e ter transbordado ideias nela, de uma forma tão intensa e sincera, que comecei a me questionar se a verdadeira megalomania não seria fazer músicas num tamanho formatado pro fácil acesso ao público.
12 – Verde Coração
Viktor Judah: Eu gosto muito dessa música e de tê-la composto, mas a identificação é zero. Eu, particularmente, não me vejo indo embora do Amazonas e, caso um dia o faça, já farei sonhando com a volta. Mas o fato é que conheço muita gente que guarda esse sentimento, essa vontade de migrar pra outros ares. Não dá pra fingir que, morando num dos cantos mais isolados da Floresta Amazônica, o desejo de ir embora não faz parte do cotidiano das pessoas daqui. Então, compus essa canção como uma carta de amor e despedida, pra traduzir a relação de quem deixa a terra natal, mas a leva no peito. Eu tenho vários amigos que me inspiraram a compor isso, pessoas que estão super felizes por terem ido embora, mas que não abrem mão de falar com amor e orgulho do Amazonas sempre que podem. Eu quero acreditar que nossa terra é grandiosa demais pra que alguém consiga abandoná-la inteiramente. Aqueles que vão, sempre levam um pedaço com eles. O sangue amazonense é forte e resiste às fronteiras.
DISCO 2:
1 – Citadina
Vinítius Salomão: Essa faixa descreve a continuação emergente de tudo que aconteceu na primeira parte do disco. Um novo começo. Um novo cenário. Uma nova mentalidade que vai sendo modelada de acordo com as novas influências e relações que surgem nessa etapa. A canção nasceu em uma tarde fria e escura, o clichê ideal pra ungir peças melancólicas. A ideia passava também por se esquivar da demonização da metrópole cinza e enfatizar também os prazeres ausentes de uma vida bucólica. Encontrei nas alegorias sexuais o alívio crítico da relação cidade e forasteiro, a atração que os beneficia mutuamente e os faz internalizar um ao outro cada vez mais. Era importante também que lugares e centros urbanos fossem registrados estética e liricamente, para que a mudança de paisagem se mostrasse explícita, mas para que também assim permeasse o organismo vivo do Húmus, agora sob nova ótica.
2 – Um Dia Sem Cor
Igor Lobo: Essa música foi mais uma das quais eu (e somente eu) quis cortar do Húmus. Erroneamente. Um Dia Sem Cor tem a exata configuração do prédio cinza que fica na avenida dos blocos de carnaval. É interessante a dicotomia que a música conseguiu atingir e o quanto essa proposta casou bem com o lado urbanoide do disco. A boemia dos centros das cidades grandes traz essa alegoria do encontrar prazer e felicidade no cinza e no breu. Portanto, Um Dia Sem Cor proporciona a experiência de um cabo de guerra onde o ouvinte é o cabo: a letra exerce uma força e, em contrapartida, o arranjo exerce outra. Construir essa experiência em estúdio foi desafiador, porque em tudo o Húmus precisa fazer sentido. Cada detalhe, cada entrada, cada saída, tudo foi cirurgicamente ajustado de modo que a canção fosse capaz de situar o ouvinte e favorecer essa confusão emocional perfeitamente orientada. A canção foi composta há alguns vários anos, num momento de confusão existencial. Ganhou vida agora, num momento oportuno de reafirmação existencial: pertenço a este lugar, que vai do verde ao cinza, do colorido ao breu, da boemia ao descanso, do húmus ao ser humano.
3 – Comunidade RP
Vinítius Salomão: A meta crônica manauara sobre a cena artística local. Essa foi a primeira música escrita pelos 4 integrantes e possui papel fundamental na construção do universo sonoro do segundo disco. Se haviam dúvidas até então, Comunidade RP escancara o viés conceitual do álbum: uma alternativa para uma música amazônica contemporânea, sofisticada, mas ainda sim, acessível e fiel às raízes. O tom humorístico acompanha a canção inteira, seja nos samples regionais, trocadilhos infames ou até mesmo nas progressões harmônicas exageradas. É uma reflexão séria, sutil, mas que também traz à tona uma face cômica e descontraída dessa bolha urbana.
4 – Sambadela
Vinítius Salomão: Sambadela é um grande refrão. O interlúdio que marca a convivência com o sentimento de perda. A tristeza dos versos contrasta com o clima boêmio trazido pela atmosfera das rodas de samba, reforçando o apelo dicotômico que se faz presente por boa parte do tracklist. Um sambista “autotunado” sustentado por uma máquina de ritmo gravada inteiramente com a boca se encontra com o tradicional coro de samba acompanhado de modulações que refletem os vários estágios da perda ao longo da canção. “Mas sem ela eu não sambo”, verso que concebe e traduz “ela” como objetivo (por vezes distante) e “sambar” como a própria razão existencial do ser. Nada mais adequado ao quadro brasileiro que Húmus serve de moldura.
5 – Somo2
Vinítius Salomão: Essa canção foi daquele tipo que veio tão rápido e natural que até desconfiei que já existia. Uma balada caipira que sofre mutações até culminar num eletrônico empolgante. Esteticamente essas transições compõem a identidade de Húmus, e principalmente, dessa segunda parte. A inspiração lírica de Somo2, por mais simplória que soe, é sincera e anedótica. A aceitação e erradicação da intolerância se fazem obrigatória, sem deixar espaços para qualquer tipo de barreira que queira surgir entre pessoas que se amam. Os muros, muitas vezes visíveis, também tomam formas no âmago do ser, e esses são os que mais resistem a cair. Geram dúvida, ansiedade e frustram planos. Por isso, frequentemente, esse exercício de desconstrução tem que ser feito de dentro para fora. Afinal, Somo2; So o2; So2.
6 – NVMFDA
Viktor Judah: Essa é uma música que conta o sentimento de alguém que depositou todas as fichas num relacionamento, mas não foi correspondido. Tempos depois, se encontra com a pessoa com quem se relacionava e encara algo como “podíamos ter dado certo se tivéssemos tentado”. É um sentimento bem irritante, quem já passou por isso sabe (risos). Mas a música é, acima de tudo, sobre superação. Eu escrevi uma letra bem maior, mas no meio do processo de produção os meninos sugeriram que ela fosse mais curta, numa forma de expressar que “o que eu tinha pra falar, falei, não preciso me prolongar”. De fato, seria contraditório querer demonstrar superação com uma música trabalhosa de 3 minutos ou mais, afinal, quem superou não quer se dar a trabalho nenhum. A vibe meio surf music, os arranjos doces e a voz calma são uma boa tradução de todo o prazer e ternura que fora o relacionamento em questão, mas o término abrupto e sem repetição é a materialização da ideia de que “eu já perdi a graça de você”.
7 – Mercúrio
Vinítius Salomão: No plano astral, Mercúrio é o planeta mais interno do sistema solar. O sol que propõe vida é o mesmo que ceifa, dependendo da distância. Da mesma forma, o elemento químico homônimo cura ou envenena dependendo da quantidade. Esse é o tema central que paira sobre a canção enquanto ela descreve as bifurcações de um relacionamento. Essa faixa está intimamente ligada à anterior, NVMFDA, liricamente por motivos óbvios, mas também através das histórias que deram origem às duas (alguns poderiam traçar paralelos até músicas do nosso trabalho anterior, LIS, e não estariam necessariamente errados). Fiz essa música sem muitas pretensões, foi quase um desabafo musical, por mais que eu não me coloque como protagonista da história original. Inicialmente, ela seria um pagodinho hipster alternativo (risos), mas acabamos optando por uma roupagem um pouco mais sóbria, concentrada em vocais e efeitos de voz. Fiquei bem contente com o resultado final e acho importante dizer também que o sofrimento e os constantes conflitos diários, sejam eles quais forem, são parte integral e complementar da temática urbanóide do álbum, contrapondo o conceito de que a música amazonense precisa estar sempre pautada pelo meta regionalismo.
8 – Bumerangue
Vinítius Salomão: Assim como o gueto representado pelo samba, a cidade tem sua boemia fortemente representada pelo blues e seus derivados abrasileirados. Nós mesmos, enquanto banda, começamos a tocar pela “noite” com muitos amigos e artistas dessa cena. Bumerangue sintetiza mais essa peça para encaixar na paisagem final da cidade. A chuva mansa, aparada pela vegetação abundante em Revel, agora é corrosiva e introduz uma melancolia exacerbada de alguém que se vê entregue às traças de um apartamento estranho. O arranjo dessa faixa sai do clássico ao inusitado em poucos segundos. Há descansos, mas a interpretação do Sérgio é intensa e intimista, exatamente como a imagem visual pedia.
9 – A Janela
Viktor Judah: Uma cantiga de ninar, mas uma cantiga moderna e adulta. Eu tinha vontade de escrever uma canção desse tipo desde que conheci “Good Night” e “Golden Slumbers”, dos Beatles. Mas como fazer essa música ser diferente de outras tantas que já existem? Decidi mudar o foco, não fazer uma letra voltada às crianças, algo que é quase regra. Essa letra é voltada a alguém cansado da rotina pesada, do dia a dia trabalhoso e desgastante da vida adulta. O conceito vai além da letra e se faz presente na progressão harmônica da música, que brinca bastante com a relação entre “tensão x resolução”. O último refrão é uma sequência de acordes “bonitos e harmônicos” contrapostos por acordes “tensos e dissonantes”. A doçura plena é perfeita em cantigas para as crianças, mas nesse caso, não funcionaria tão bem, porque nossas vidas não são mais doces o tempo todo.
10 – Fórmula de Compasso
Viktor Judah: Foi a primeira música que escrevi na vida! Não foi a primeira tentativa, mas foi a primeira que senti “é, tenho uma música” e isso foi aos 17 anos, quase uma década atrás. Estava saindo do ensino médio e quis deixar essa letra como um recado aos meus companheiros de escola. Essa época da minha vida foi totalmente pautada pela música, foi quando comecei a decidir que esse seria o caminho da minha vida e comecei a querer aprender mais e mais. Dessa forma, a melhor maneira de dar meu recado final era através de pequenos trocadilhos com termos musicais, “na fórmula de compasso da vida, o meu destino harmonizou com o teu”. Hoje em dia, não é lá uma das minhas composições favoritas (risos), mas mereceu um lugar especial no disco. Aproveitei meu atual desapego pela letra e realizei algo que tinha vontade há tempos: uma bossa-nova inteiramente cantada com vocoder.
11 – K7 (part. Gabi Farias)
Viktor Judah: Uma das minhas composições favoritas. Numa tarde ensolarada típica amazonense, conversava com minha mãe sobre a vida, sobre família, sonhos e histórias do passado. Foi uma conversa muito reveladora, muito acolhedora e marcante. Me fez pensar em como a vida é algo tão complexo quanto frágil. Tamanha riqueza em algo tão passageiro e fino, que sequer tem substância. O que é a vida, afinal de contas? Fui dormir pensando nisso. Acordei no meio da madrugada com pedaços de letra e melodia que surgiram na minha cabeça enquanto sonhava, puxei depressa o violão que fica ao lado da minha cama, peguei meu celular e gravei uma ideia inicial com tudo que veio em mente. Na manhã seguinte, descansado, analisei e poli aquilo que anotei, assim nasceu “K7”. Não demorei muito pra ter a ideia de chamar a Gabi Farias pra cantar junto comigo a canção. Ela é dona de uma das vozes mais doces da nova geração de artistas amazonenses e já havia se mostrado muito fã da nossa banda. O trabalho ficou lindo, modéstia à parte, muito bonito. Com a chegada do elemento “dueto vocal”, a música, que inicialmente seria voz e violão, passou a pedir por um arranjo mais “musical dos anos 60”, ou algo como Frank Sinatra numa roupagem moderna. Quem sabe um dia ela toca no especial de fim de ano do Roberto Carlos (risos).
12 – Terrassol
Vinítius Salomão: Neologismo que junta os conceitos de terra natal e sol guia. Terrassol marca o término do universo compartilhado de Húmus. A toada presente na primeira parte do álbum, retorna agora com menos elementos orgânicos e mais experimentações. A parede verde é relembrada e saudada aos brados de “Minha terrachão, tupiniquim, é verde! E o coração é verde! Terrassol me faz voltar!”. Da MPB psicodélica, passando pelo hip hop moderno, até a toada eletrônica. Essa música poderia facilmente resumir o disco como um todo e, de fato, o faz de maneira estética ao final. A todos aqueles que deixaram sua terra, família e amigos, Terrassol é o relato progressivo de todo esse sentimento desde a partida até a volta (física ou não). O orgulho das raízes é capaz de silenciar a voz do deus que incentivou a despedida.
13 – Húmus
Igor Lobo: A canção homônima a toda a aventura chega como uma música satélite e é pra assim ser sentida. Entretanto, sua mensagem não deve ser entendida como alheia à narrativa até aqui contada. Húmus chega apresentando o descanso, o fim do ciclo. Todo e qualquer ciclo permite renovação, então, o início e fim estão basicamente no mesmo ponto. A canção apresenta uma ambientação de conversa ao pé da cama, a conclusão da história antes da cria dormir. Dizemos que é o momento do artista para com seu público e procuramos fazer isso da forma mais crua e representativa possível: um instante intimista, longe das indumentárias utilizadas até aqui, o cerne criativo. O Húmus termina em Húmus, fechando a ideia do ciclo, mostrando que a vida em sua forma natural é um ciclo, mas viver é uma reta: nasce e morre. Levar toda essa interpretação pra estúdio foi dar vida (ou fim) à obra e aqui, nesse instante, recaiu sobre todos a sensação de dever cumprido mas também o pesar da partida de um período muito intenso de 2 anos de produção. O Húmus nasceu abraçado em sentimento, ganhou asas ainda graças a isso e vai perdurar até sua energia ser naturalmente transformada… Em outros caminhos, em outras pessoas, em novas histórias. O retorno ao Húmus aqui se concretiza e nova vida deve ser anunciada em breve. Cumpra-se.