8 de setembro. 2012.
À noite. Na rua. Cercado por uma horda multietária, mas sozinho. O som de hélices acima de nós ventilava mil especulações. Será que ele está lá? Será que ele vai descer? O helicóptero pairava sobre a lagoa e nos amontoávamos em frente ao palco, cadeirinhas de praia, isopores de bebidas, roupas de domingo. Não lembro qual dia era, da semana, mas pouco importa. Era um encontro. Era um domingo. É a semana que se molda pra que ele chegue. E ele chega, sorri seu script e sem muito esforço nos transforma numa massa amorfa de afetos cultivados por ele mesmo. Ciente disso, nos manipula feito uma torcida de futebol. Deflora a memória adolescente de sexagenárias (não sou sexagenário, mas tenho as mesmas memórias), o sexo na vida dessas mesmas, anos depois (não vivi esses anos, mas…), e cavalga a vida dessas moças que foram namoradinhas dele (e são) de forma tão competente que elas nos contam a mesma história, sem querer, num tipo de ritual cuja liturgia nos é tão comum que em dois tempos me vejo liquefeito cantando alguma coisa sobre deuses nos quais não acredito.
Corta.
O sociólogo alemão Max Weber definia poder como a possibilidade que um indivíduo tem de fazer valer sua vontade em uma relação cujo sentido seja compartilhado pelos envolvidos. Nesta linha, entendia a dominação como a forma por meio da qual o sujeito é capaz de fazer com que outros indivíduos tomem como sua vontade a vontade original do dominador, deferindo uma posição desvantajosa sem ao menos perceber…
… é mais ou menos o que acontece toda vez que chamamos o cantor cachoeirense Roberto Carlos Braga, o Rei, de rei. Não que ele não seja e não que este não seja — também — um texto de súdito.
Roberto Carlos, é provavelmente, um dos elementos de identificação mais poderosos da Cultura Popular Brasileira, e aí vai a minha tese: não somos súditos dele. Somos vítimas.
Dou um doce se você conseguir lembrar do seu primeiro Roberto, dou outro se você não lembrar de um momento da sua vida cuja memória seja evocada por um verso ou melodia do cantor. É um ardil coletivo que talvez se desvaneça, mas nossa geração carrega a maldição de ser filha das primeiras gerações de fãs do Roberto, aquelas meninas da Jovem Guarda, que se apaixonaram e foderam e se foderam ao som dele, tendo nele o único amor que não se foi, mesmo que cantasse sobre amores de todos os tipos (não à toa cantou a vida adulta dessas moças num misto de cotidiano enaltecedor da mulher, foda e fossa). Essas garotas nos educaram ouvindo Roberto quando a gente não tinha como se defender dele. Você pode discordar, mas o elemento de identificação pessoal com um sujeito que cantou sobretudo a si mesmo, é difícil de ignorar. Quando ele cantou Lady Laura na lagoa cantou sobre todas as nossas mães, e por aí vai.
Complicado escapar de Roberto, complicado tentar desconhecê-lo, mesmo que por trás do personagem gente boa, sorriso fácil e gírias caducas se esconda um monstro autoritário. Mas esse também não é um texto sobre Roberto.
Corta.
Final dos anos 1990. Entro na faculdade de História. Gosto de ler, não gosto de Gramática e das saias que o pessoal de Letras usa. Não tardo a descobrir que os historiadores não eram os escritores mais interessantes, sobretudo pela distância, empáfia e pela ausência de uma paixão pra mim essencial à pretensão de ocupar o tempo de quem lê.
Nessa época cai nas minhas mãos um livro improvável. A capa estampava os cantores Paulo Sérgio, Odair José e um cafajestíssimo Waldick Soriano, cuja canção “Eu não sou cachorro, não” batizava o volume assinado pelo historiador e jornalista Paulo Cesar de Araújo. Era um livro de História, escrito por um “professor de História do ensino Fundamental e Médio”. Essa informação, a última do livro, na segunda orelha, transformou Paulo Cesar de Araújo numa figura seminal pra forma como eu via meu próprio trabalho, um tipo de herói, quando eu pesava a posição acadêmica e o peso da obra.
Digeri “Eu não sou cachorro, não” como a um Mutarelli, impressionado com a densidade da pesquisa, a ressignificação de uma geração marginalizada da Música Brasileira, a carga afetiva nunca negada entre pesquisador e objeto num livro que não só pensava com o coração, mas se pretendia a um público mais amplo (só há uma citação teórica direta em mais de 400 páginas).
No livro, Paulo Cesar recorre às histórias de vida dos cantores populares dos anos 1970 e reconta o auge de sua fama durante a Ditadura Militar, percebendo o termo brega como parte de uma geração duplamente marginalizada, que tanto não consegue espaço no cânone da Música Brasileira pelas pechas de brega, cantores de empregada e puteiro, como são perseguidos pela censura do regime. Segundo Paulo Cesar de Araújo, o brega seria um termo relacional usado pra apontar aquilo que “a Classe Média não identifica à Modernidade ou à Tradição”, o que faz com que o gênero ocupe um limbo fadado ao esquecimento. Ocuparia, talvez, não fosse caras como ele.
“Eu não sou cachorro, não” mudou minha percepção sobre a História e não exagero em dizer que foi um livro catalizador do meu interesse acadêmico pelos que estão à margem.
Mas corta.
Anos 2000. Paulo Cesar de Araújo lança um novo livro, desta vez, a biografia de Roberto Carlos. Comprei na primeira leva, fascinado que estava por ler sobre Roberto pelo olhar de Paulo Cesar. E li.
Como em seu livro de estreia, Araújo foi fundo na história que se propôs a contar e nos deu um Roberto humano ainda que em sua majestade. Da criança mutilada aos seis anos ao cantor de calouros no Rio, da audaciosa figura que cantava para a juventude ao personagem do especial de fim de ano, “Roberto Carlos em detalhes” era (e é) o que de mais completo se escreveu sobre quem de longe é o mais importante cantor da Música Popular Brasileira.
Estava lá também o que me cativara no livro anterior: a paixão inegada, a prosa leve e a exposição do óbvio que ninguém viu. Na biografia do Rei, o biógrafo também se tornava personagem, pois desde “Eu não sou cachorro, não” já era claro que a vida do historiador havia sido recortada pela trilha dos cantores dos quais ele falava. Os livros formavam uma espécie de historiografia confessional e rigorosa do poder da Música como sedimentadora de experiências.
A biografia de Roberto Carlos seria um importante referencial para a história da Música Brasileira não fosse (é a vida) Roberto Carlos.
Corta.
Numa história amplamente midiatizada, o cantor entrou com duas ações contra Paulo Cesar de Araújo e a editora Planeta, retirando das livrarias 11.000 cópias de “Roberto Carlos em detalhes”, que até hoje mofam num galpão. Foi o maior caso de censura no Brasil desde que os generais ocupavam o Executivo.
Paulo Cesar de Araújo passa da noite pro dia de um historiador razoavelmente desconhecido a personagem central de um debate amplo no Brasil em torno das biografias não autorizadas. O historiador que eu lia e admirava passou a ser reconhecido como o “biógrafo do Roberto Carlos”, e isso me deixou meio bolado.
Corta.
Não. Continua.
Na surdina, Paulo Cesar e a editora Companhia das Letras lançaram em maio de 2014 “O réu e o Rei: minha história com Roberto Carlos, em detalhes”. Sem o tradicional estardalhaço que cerca a editora e o próprio Roberto, o livro apareceu nas livrarias como se pudesse ser recolhido a qualquer hora. Não foi. Mas voltemos.
A censura a “Roberto Carlos em detalhes” não passou de graça. De cara gerou uma bipolarização e várias figuras do campo das Artes no Brasil se posicionaram a favor ou contra a proibição. Enquanto nomes como Xico Sá, Paulo Coelho, Elio Gaspari, Marisa Monte, Jotabê Medeiros, Marcelo Tas, Caetano Veloso e Marcelino Freire enalteciam a biografia e argumentavam em textos a maioria das vezes carregados de afeto e reverência a Roberto contra sua própria estupidez, outros como Djavan, Maria Bethânia, Zezé di Camargo (que também processou um biógrafo), Jards Macalé, Zeca Pagodinho, Chico Buarque, o então Ministro da Cultura Gilberto Gil e Caetano Veloso (que deu uma marinada) engrossavam um caldo distópico e difícil de entender.
Os detratores da biografia são ironicamente representantes de uma geração que ascendeu artística e politicamente como defensores da liberdade de expressão, expondo o autoritarismo do regime militar, sendo exilados, censurados e violentados por isso. Se nos anos 1970 essa geração estava em ascensão e comprometida com a mudança, tornaram-se senhores confortáveis preocupados com a estabilidade três décadas depois, se transformando no espelho daquilo contra o qual lutavam. Reunidos no grupo Procure Saber (fundado para defender diversos interesses dos músicos e cooptado por Roberto quando da polêmica das biografias), Caetano, Gil e Chico Buarque tiveram várias oportunidades de pavonear suas caduquices Brasil afora: sempre ressaltando ser contra a censura enquanto censuravam. Chico Buarque negou ter dado entrevista a Paulo Cesar de Araújo (e desculpou-se quando a evidência apareceu). O Procure Saber veio a público em um vídeo no qual se apresentavam como pessoas que tentavam desvelar o mundo ao público, mas que tinha que se proteger. “Nossa vida é nossa melhor defesa”, disse Gil no vídeo do Procure Saber, numa demagogia lancinante e sem perceber (ou pior, percebendo), que sua vida é sua maior fragilidade neste caso; e completa: “se aqui nos exprimimos o fazemos não só em nosso próprio nome, mas em nome daqueles homens e mulheres que não possuem o acesso que temos”. “Não queremos calar ninguém, mas queremos que nos ouçam”, finaliza um caquético Roberto Carlos no fundo azul certamente escolhido por ele mesmo.
O que Gil chama de “acesso” é a utilização e reconversão de um gigantesco prestigio social acumulado por décadas que permite aos artistas do Procure Saber (e a Roberto Carlos, que usa seu prestígio sobre o Procure Saber) discutir essa “belíssima conquista constitucional”, nas palavras do Rei, no apartamento da Ministra do STF Carmen Lúcia ou que solicitam audiências com a presidente Dilma e são recebidos literalmente aos prantos.
Corta.
O debate sobre as biografias no Brasil se baseia no conflito entre a liberdades de expressão, de pesquisa e artística do biógrafo e os direitos à honra, à imagem, à privacidade e à intimidade do biografado. Tanto a liberdade de expressão quando a privacidade são direitos fundamentais. Se em outros países o direito à liberdade de expressão tem mais peso que o segundo, no Brasil ele esbarra nos artigos 20 e 21 do Código Civil, que dizem “Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.” e “Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma”.
Trocando em miúdos, escrever sobre uma personalidade relevante no Brasil inclui o risco de ser processado pela personalidade ou sua família, as biografias passam a precisar de autorização prévia para ser escritas e publicadas, e não se precisa ser muito esperto pra saber que tipo de recorte biográfico sai das mãos do próprio biografado.
Corta.
Se o grupo de Roberto Carlos estava claramente contra Paulo Cesar, parece que Roberto Carlos (e como não?) contaminou até os defensores do livro escrito pelo historiador. É quase unanimidade nos argumentos de defesa a “Roberto Carlos em detalhes” o fato de que Paulo Cesar é fã do cantor e que o livro ecoa essa condição. A biografia é classificada como um “livro de fã” e mais de uma voz ressoa o amor do biógrafo pelo biografado. Caímos aí na falácia da incompetência disfarçada e no jogo cordial denunciado por Sérgio Buarque de Holanda. Ao defender Paulo Cesar como um fã de Roberto ataca-se o historiador Paulo Cesar de Araújo como profissional, é uma falsa defesa que compromete mesmo o debate, tentando trazer “Roberto Carlos em detalhes” pro território do afeto que Roberto vende há 50 anos e jogando de forma implícita a legitimação do livro pela via do carinho e da veneração. “Este pode. Outros? Veremos…”
A escrita de Paulo Cesar de Araújo é de fato leve e afetuosa e “Roberto Carlos em detalhes” é um livro carinhoso, mas isso não é o que faz dele uma obra relevante. Assim como “Eu não sou cachorro, não”, é no recorte que o autor faz da realidade que está seu grande mérito: o trabalho do historiador é significar a experiência do tempo, construir uma memória a partir de vestígios não percebidos por quem viveu e dar sentido à experiência coletiva pelo desencadeamento lógico de elementos aparentemente desconexos. Paulo Cesar é extremamente habilidoso nesse metiê e consegue costurar diálogos com décadas inteiras de recortes e fragmentos.
Se o reposicionamento de alguns cantores da Música Brega parece hoje como “natural”, era estranho antes de “Eu não sou cachorro, não” que uma figura como Odair José fosse reverenciado como o é. Paulo Cesar, ao contar a história de uma geração também a constrói enquanto tal e contribui para a reversão do local que alguns destes artistas ocupam dentro da Música Brasileira.
Da mesma maneira, “Roberto Carlos em detalhes” parte da premissa de que o maior fenômeno da Música Brasileira, um cantor que estava onde quer estivesse a memória afetiva dos brasileiros nos últimos 50 anos não possuía um livro capaz de estabelecer sua importância para a cultura do país. É isso que o livro faz, não como uma simples homenagem, mas com método, disciplina e muita pesquisa. Paulo Cesar, como bom historiador, percebe uma Lacuna na historiografia da Música Brasileira e a preenche.
Somente alguém muito tolo ou mal intencionado como Roberto Carlos pode pensar, como disse, que “o biógrafo pesquisa uma história que está feita, que está feita pelo biografado. Então ele na verdade não cria uma história”. Assim como os jornalistas, historiadores e antropólogos criam aquilo que descrevem, de outra forma qualquer livro ou reportagem daria conta da Segunda Guerra Mundial, por exemplo. A história é uma versão construída da história, entre tantas, pras quais no frigir dos ovos, a realidade ou o “passado” é uma utopia. O Roberto Carlos de “Em detalhes” é um entre tantos, um que desagradou o Rei, mas é esse o trabalho do contador de histórias e é um perigo esconder a competência e o empenho sob o cobertor acalentador do afeto.
Corta.
Antes da publicação de “Roberto Carlos em detalhes” o jornalista (e biógrafo) Ruy Castro, que havia sido processado nos anos 1970 por Roberto, disse a Paulo Cesar de Araújo: “O seu trabalho vai ser confundido com uma publicação de fofocas”. O Rei já tinha um histórico com censuras. Em 1979 mandou queimar nada menos que 134 mil cópias do livro “O rei e eu”, do seu ex-mordomo Nichollas Mariano. Roberto acostumou-se a ter em torno de si um séquito ocupado em lhe fazer as vontades. É difícil agir contra ele. Daí a grande genialidade de “O réu e o rei”.
O livro inaugura um gênero, a “autobiografia de biógrafo censurado”, pois apesar do que parece, O réu e o rei não é um livro sobre Roberto Carlos. Bem, é, mas é um livro sobre um Roberto mixuruca. Em mais de 500 páginas, Paulo Cesar conta a sua história, de menino pobre em Vitória da Conquista a capa dos maiores cadernos de cultura do país. Num texto ainda mais carregado de afeto (é um dos mais bonitos livros de amor que já li), Paulo Cesar traça sua própria trajetória de brasileiro comum a partir da trilha sonora que Roberto fornecia todo final de ano. Não é a história somente do Paulo Cesar que se lê em “O réu e o rei” e nisso está seu grande mérito.
Mas antes, um carinho.
O texto de “O réu e o rei” está contaminado pela poética do Roberto Carlos. A prosa de Paulo Cesar esconde, conscientemente ou não, várias citações a letras do cantor, diretas ou indiretas, desde um “minha casa era modesta” pra descrever onde morava até trechos longos nos quais um momento da vida do autor são entendidos a partir de versos do cantor. A impressão que dá é que o livro é uma enorme letra em prosa. Os livros anteriores eram em terceira pessoa, era o historiador Paulo Cesar de Araújo dando conta de sua pesquisa. Este último usa a pessoa que o Roberto mais usa, a primeira, e ao falar de si o autor demonstra uma grande influência dessa “escrita afetiva” que perpassa a audição longa do artista. É difícil para mim, também fã de Roberto, não ouvi-lo ecoar em frases como “ainda hoje ressoa em mim o caloroso aplauso que recebi do público em Paraty”. Mas isso também não tem muito a ver com Roberto Carlos.
Paulo Cesar consegue narrar uma história na qual foi massacrado sem que nela se consiga ler mágoa, rancor ou raiva. O texto parece ter sido — esse sim — escrito para o Rei, a capa é azul e branca, por exemplo, quando poderia ser marrom se a intenção fosse ofensiva. Paulo Cesar consegue contar de maneira doce os anos 80, mesmo com Roberto em queda. A impressão é que Araújo foi o único que colocou em prática a obra do cantor. Fiel a um sentimento contemporâneo ao que narra, o final do livro é tomado por uma acidez velada na qual o artista já aparece como uma figura ridícula envolta em sua megalomania. E nem isso tem muito a dar contas a Roberto Carlos. Explico:
É nesse afeto que povoa o livro que está a grande porrada. “O réu e o rei” é um bogue com luva de pelica. Primeiro pela audácia de demonstrar ao Roberto (e a nós) que a história não é dele. Ao influenciar o historiador (e a todos nós, vítimas) e oferecer uma trilha sonora à sua vida, não é necessário falar de Roberto para falar de Roberto. Na prática, o conteúdo “proibido” de “Roberto Carlos em detalhes” está em “O réu e o rei”, mas isso já não tem muitas contas a prestar ao Rei, é da história do Paulo Cesar que estamos falando, e da minha e da sua, enfim.
O fato de ser a história do biógrafo e dessa história ser como é, funde a cuca do autoritarismo e torna o Roberto irrelevante. Aqui talvez haja uma vitória de Pirro, se considerarmos que ideia de “Roberto Carlos em detalhes” era a de conceder relevância discursiva ao cantor. Todas essas narrativas sobre o Roberto são robertocentricas, “O Réu e o rei” se centra no “zé povinho” e Roberto vira uma espécie de paisagem. A pergunta que o livro responde não é mais “quem é Roberto Carlos?”, mas “como Roberto Carlos foi digerido?”. Isso é muito mais rico que o próprio Roberto, na minha opinião. Restarão os discos, o livro e a memória dos dois, e é nessa memória que o trabalho de Paulo Cesar de Araújo se situa.
O livro também é um belíssimo documento sobre o Brasil no contexto da Ditadura e Pós-Ditadura. Quando posto ao lado de “Eu não sou cachorro, não” é possível perceber a metamorfose na ideia de censura no país, com a impressão de que apesar de todos os discursos, não conseguimos nos livrar do ranço do autoritarismo. A censura só muda de lugar. A forma como o livro, ao descascar o processo que culminou na proibição do anterior, demonstra a pessoalização da coisa pública de maneira tão descarada que também remete ao contexto da Ditadura. Mesmo em uma petição, Roberto Carlos é chamado de Rei! Até uma peça jurídica se torna texto de súdito.
A despeito disso, é Roberto que sai diminuído de “O Réu e o rei”, do qual saímos todos nós, o “brasileiro pé duro” os bem mais de um milhão de amigos que ele conseguiu nesses 50 anos e que agora dizem dele o que ele deixou, que ele mesmo já não interessa tanto. Além disso, as biografias e o direito à liberdade de expressão voltaram a ser assunto, o que contribui pra tirar um caco da nossa máscara de cordialidade. Gosto de pensar que essa forma de colocar o debate deve um tanto ao trabalho do Paulo Cesar de Araújo. Belo trampo prum historiador.
“O réu e o rei” me deixou arrebatado por uma semana inteira e onde eu ia era esse sentimento absurdo do livro que ficava, num tipo de reencontro bom com um escritor que eu já admirava há anos. É seu melhor livro, na minha opinião. Meses depois fico sabendo que Paulo Cesar vem à Feira do Livro de São Luís e sou chamado pra mediar a palestra. Fico besta. Coincide de hoje (4 de novembro — é mentira a coincidência. Planejei tudo!) eu também lançar um livro fruto de seis anos de pesquisa que começaram bem antes, quando li “Eu não sou cachorro, não”, e comecei a pensar que talvez tenhamos mesmo um dever de agradecer — por não óbvio — cada mimo que nos ofertam os corações alheios.
Obrigado. Té já.
Corta.
Bruno Azevêdo é escritor e do lar. Ele lança hoje, na feira do Livro de São Luís o livro “Em ritmo de seresta: música brega e choperias no Maranhão”. Ele garantiu que vai ter uma seresta ao vivo e cachaça grátis.