Batman sempre foi um personagem de destaque dentro do universo dos super-heróis, desde suas origens com a Detective Comics até hoje em dia com as inúmeras seqüências de filmes, jogos, revistas semanais e especiais. Dentro desses 70 anos, porém, o herói, apesar de manter sua roupa taciturna, suas capacidades físicas e habilidades de detetive, foi transformado pelas décadas e por seus diferentes escritores e desenhistas. Um ícone deve representar as morais, esperanças e visões de mundo do período que o cria e recria, e Batman é um espelho das sociedades que não apenas compraram seus quadrinhos como também que o tornaram um dos maiores representantes dessa mídia.
As mudanças pelas quais o Cavaleiro das Trevas passa, porém, variam, podendo ser o surgimento de um ajudante mirim, de um novo super-vilão ou a revitalização de seu lado detetive. Mas foi nos anos 80 que houve uma enorme inovação da forma de se mostrar o Cavaleiro de Gothan. O Cavaleiro das Trevas de Frank Miller e Piada Mortal de Alan Moore foram lançados nessa época e nunca mais o homem morcego foi o mesmo. Suas revistas ganharam um tom pesado e o personagem foi definitivamente trazido para o nosso mundo: ele foi humanizado, de certo modo, enfraquecido (não se tornando fraco, mas ganhando defeitos e estando sujeito a idade e aos seus traumas).
Em Cavaleiro das Trevas, Frank Miller procura nos mostrar um Batman decadente, afetado pelos anos e pelas dores, que nunca conseguiu, mesmo após todos seus esforços, esquecer a marca do assassinato de seus pais, sendo o maior responsável pela mudança, mas é no trabalho de Moore que quero me focar. Piada Mortal apresenta um marco para as histórias do Batman sem ser propriamente uma história do Batman, pois seu protagonista é na verdade o Coringa.
O que a história procura mostrar é que, assim como o Batman um dia já foi uma criança chamada Bruce, também o Coringa fora um homem comum, com preocupações corriqueiras e uma família amorosa, mas que um acontecimento marcante (ou, nesse caso, dois), haveria transformando-o para sempre. A história, porém, é ao mesmo tempo uma das mais pesadas jamais feitas: o Coringa não apenas procura torturar Gordon para levá-lo além do extremo da sanidade, como o faz de forma verdadeiramente cruel, buscando atingi-lo pela degradação física e moral não apenas do comissário, mas também de Bárbara, sua filha, alejando-a e estuprando-a dentro de sua própria casa, e deixando tudo devidamente fotografado.
Esta sensação de degradação, sujeira e loucura, porém, não seria capaz sem a participação de Brian Bolland, exímio desenhista e colorista. Ele é capaz de maneijar o traço e dominar as fisionomias de forma a produzir dois Coringas: o psicopata deformado e pontiagudo e o chefe de família desesperado. E, assim como uma mesma pessoa muda seu rosto ao longo dos anos mas permanece sempre reconhecível àqueles que a conhecem, Bolland foi capaz de fazer seus Coringas, ambos apresentando expressões e sensações completamente diferente aos leitores, ainda que possuam marcantes similaridades.
Ainda sim, sua versão do vilão é uma das mais pitorescas, seu queixo é super-afinalado e seus traços marcantes, permitindo que o ilustrador trabalhasse com uma infinidade de jogos de luz que enfatizavam a mensagem que este desejava passar.
Para falarmos da arte deste quadrinho, porém, precisamos falar de suas cores. Quando a história foi lançada em 88, Bolland deve de pedir para John Higgins dar conta do trabalho, porém o resultado não ficou exatamente como ele esperava. Foi somente quase 20 anos depois, quando em novembro de 2007 a DC informou que iriam lançar uma nova versão do Piada Mortal que o ilustrador teve a chance de aprimorar a obra. As novas cores são mais vivas e impactantes, produzindo um contraste maior e, ao mesmo tempo, mais realista, enfatizando o objetivo da história. Ademais, Bolland procurou abordar algumas partes de forma diferente. As cenas de flashback ganharam um preto-e-branco apenas quebrado por algumas cores ocasionais como o verde e o vermelho, o que provoca um impacto maior ao vermos a transformação do Coringa e diferencia estes momentos da história que se passa.
A cena abaixo ilustra perfeitamente os acréscimos da recoloração:
Porém, a grande inovação trazida pela história, mostrar o Coringa como um homem através do desvendamento de seu passado, foi precisamente o que arrancou o maior número de críticas dos fãs e até mesmo daqueles envolvidos na produção da obra. Citando o adendo final da Edição Deluxe da DC, Bolland afirma “O roteiro de A Piada Mortal estava muito bom, mas eu devo admitir que cerei os dentes algumas vezes enquanto a desenhava. Eu, por exemplo, nunca teria escolhido revelar a origem do Coringa. Eu penso nesta como uma das diversas possibilidades de origens que se manifestam na cabeça degenerada do Coringa”, e esta é a hipótese que muitos fãs aceitam e alguns chegando a afirmar que o próprio Moore buscou este resultado, mesmo que o autor nunca tenha corroborado com esta.
Eu, particularmente, também não gosto desta abordagem da história do Coringa. Piada Mortal é uma série dentro do Universo DC e, portanto, fala do Coringa caótico, desconhecido, confuso, porém não é assim que ele aparece no quadrinho. Sua história não possui nenhuma incongruência (o que faz com que eu considere pouco provável ser um devaneio da cabeça de seu criador) e o Coringa possui total compreensão do que ocorreu e no que ele se transformou por causa disto, possuindo um objetivo: levar outras pessoas à loucura através de traumas específicos, como em uma espécie de vingança ou de se sentir melhor com o que ocorreu com ele, sabendo que seu caso não fora à parte, que ele fora fraco. Como o próprio personagem declama no final do quadrinho: “É muito tarde para mim”. Enfim, o problema de mostrar esse Coringa humanizado não é o peso que se coloca nele, mas sim o fato de descaracterizar o personagem pela sua coerência.
Por outro lado, toda esta construção também tem seu lado interessante. Piada Mortal não apenas trata do Coringa, e essa transformação pela qual ele passou assemelha-se em muitos aspectos ao que aconteceu com o Batman e o quadrinho busca esta semelhança.
Logo no início da história, Batman está indo fazer uma visita ao Asilo Arkhan buscando ter uma conversa com o Coringa, tentando resolver ou apenas discutir acerca da relação existente entre ambos. Segundo o Cavaleiro das Trevas, o único futuro para a relação doentia dos dois seria a morte de pelo menos um deles. No final do quadrinho porém, Moore nos mostra que na verdade a convivência pacífica ou a confiança entre os dois é impossível, não apenas pela conversa entre os dois como também pela piada feita pelo Coringa no final, a princípio uma piada ruim que não parece ter nada a ver com o que se passou em todo o quadrinho.
Havia dois caras em um manicômio. E uma noite eles decidiam que eles não gostavam mais de viver em um asilo. Eles decidiram que iriam escapar! Então, eles foram até o teto e dali, a uma pequena distância, eles conseguiam ver o topo da cidade prolongando-se sob a luz da lua, prolongando-se em direção da liberdade. O primeiro homem simplesmente pulou sem problema. Mas seu amigo, seu amigo não tinha coragem de pular pela brecha entre os prédios. Você compreende…. Você compreende, ele estava com medo de cair. Então, o primeiro cara teve uma idéia… Ele falou “Hey! Eu tenho uma lanterna comigo! Vou acendê-la na direção do vazio e você pode andar através do facho de luz e se juntar a mim!” Ma-mas o segundo cara simplesmente balançou a cabeça. Ele di-diss… Ele disse “O que você acha que eu sou? Um louco? Você iria apagar a lanterna quando eu estivesse na metade do caminho!”
E então temos no final do quadrinho os dois loucos que há pouco tentavam se matar rindo, finalmente juntos, de uma piada sem graça, em sintonia. É uma visão um tanto perturbadora, ver o Batman rindo como um lunático em total sintonia com o Coringa. Talvez ele risse pelo aburso da situação no qual ele se encontravam, talvez porque percebera o quão aquela piada sem graça na verdade fosse uma perfeira simbolização de sua relação com o maníaco que ele caçava durante anos. De qualquer forma, essa cena parece ser emblemática para a relação dos dois.Piada Mortal é, portanto, uma história que traz uma nova face do Coringa, da relação que o Batman possui com este, uma relação deturpada e odiosa, e das similaridades existentes entra herói e vilão. E o Coringa percebe isso, e chega a afirmar para o Batman: “É apenas preciso um dia ruim para o mais são dos homens a um lunático. Isso é o quão longe o resto do mundo está distante de mim. Um dia ruim.” e, então, ele explicita o que Moore deseja nos mostrar: “Você teve um dia ruim uma vez, estou certo? Eu sei que estou. Dá para saber. Você teve um dia ruim e tudo mudou. Por que outra razão você se vestiria como um rato voador? Você teve um dia ruim e isto te deixou tão louco quanto todas as outras pessoas… só que você não o admite!”