Muitos anos atrás, Neil Gaiman ainda era roteirista de Sandman e começava a ganhar espaço no Panteão dos melhores escritores de quadrinhos. Citar seu nome sem falar de Miller e Moore era quase um pecado. Filas se formavam para pedir seu autógrafo nas convenções e, em uma dessas filas, Rantz Hoseley chegou para Neil com uma fita demo do que viria a ser o primeiro disco de Tori Amos: Little Earthquakes.
Capa do livro por Jason Levesque
Neil ouviu, ligou para Tori, e uma amizade se formaria entre os dois que ultrapassaria os limites do real, entrando no reino das histórias de Gaiman e das músicas de Tori.
Daí em diante, citar Tori sem Neil e vice versa é quase um crime. Ambos citam-se mutuamente, bem como criam personagens, letras, histórias, e muito mais seguindo ideias um do outro. As músicas de Tori sempre contaram casos, criaram personalidade e mudaram o conceito dos contadores de história.
Em homenagem à ela e seu jeito de inspirar, Rantz juntou mais de 80 artistas do mundo dos quadrinhos fora da linha mainstream para simplesmente embelezar mais ainda 50 músicas dela com desenhos, imagens conceituais, importações literais ou silvos de delírio em poucas páginas. O resultado é o enorme e fantástico álbum Comic Book Tattoo, que infelizmente o leitor comum não vai ter acesso no Brasil, afinal, são 480 páginas em 3kg de deleite visual um tanto quanto complicado de manusear.
Em Flying Dutchman, primeira música narrada no livro, temos em seu começo o seguinte: “Hey kid, I’ve got a ride for you. They say, your brain is a comic book tatoo. And you’ll never be anything” (Ei garoto, eu tenho uma viagem pra você. Eles dizem que seu cérebro é a tatuagem de uma história em quadrinhos e você nunca será nada). É algo pesado de se ouvir logo de cara, e talvez já crie a imagem de como alguns setores da sociedade vislumbram a arte.
Tudo começa com ela, uma música que ao que tudo consta, foi baseada em Rantz, e nela Amos já prega sua crítica contra àqueles que censuram a arte: “Straight suits, they don’t understand.” (Ternos arrumados, eles não entendem).
O desenhista David Mack, que trabalhou para a Marvel por alguns meses fazendo capas para a revista do Demolidor e Vingadores, cria uma viagem insólita pela mente humana, mostrando a dualidade das interpretações e dos pensamentos, inovando na forma de se explicitar por meio de imagens uma história. A liberdade e a evolução são os temas da música, e Mack os coloca nas páginas com a devida soberania do artista fantástico que é.
Vemos uma dualidade nas páginas. Embaixo, o pequeno personagem deixando sua imaginação voar, entrando no reino de sua mente e criando formas e imagens, para depois voltar a ser ele mesmo, envelhencendo da forma que a socidade crítica quer que ele faça.
Ainda assim, vemos a letra da música passando na nossa frente, mas ela não está ali para narrar e nem ser seguida à risca, em verdade, mas dá para se ater à letra que fica flutuando erraticamente à frente de nossos olhos enquanto as imagens fixam nossa atenção. E isso é apenas a primeira história.
No decorrer do livro, vemos interpretações ao pé da letra, outras mais artísticas, outras apenas histórias com um fundo próximo ao das músicas. Como é o caso de Winter, contando a história de uma mulher que volta para ver sua mãe enferma e descobre que 15 anos atrá,s quando seu pai havia fugido e supostamente morrido, na verdade ele havia a deixado para trás devido à natureza do dom que ele passou para ela e que, agora, seria a vez desta cuidar das coisas, da forma que ele fazia.
Em The Beekeeper a bela arte de Christopher Mitten se mistura perfeitamente à história escrita por Neil Kled sobre Hannah, uma enfermeira que acaba deixando seu trabalho e dedicação passarem por cima de sua vida e relacionamento, como uma abelhinha incansável em um texto que claramente remete à música em seus trechos finais, mas não é uma interpretação literal.
Agora, falar em interpretação literal das músicas é citar a obra de arte de Irma Page e Mark Buckingham (Fábulas) criada em cima de “Snow Cherries From France, uma das músicas que Tori confessa ter demorado para escrever, tanto que acabou fazendo parte da coletânea Tales of a Librarian.
Nela, vemos a história de duas crianças, vivendo os dias de sua infância, usando sua imaginação para criar mundos e histórias, e quando ela se declarou para ele, em troca ele a ofereceu a cerejas nevadas da França. Tudo isso perfeitamente criado e desenhado, sem balões com falas, apenas imagens. Basicamente, pode-se acompanhar a música quadro a quadro, se desenvolvendo até o triste final, quando o rapaz a deixa para trás, navegando em direção ao horizonte, deixando-a triste e sozinha.
Uma nota de mérito vai para a fantástica interpretação de Honey feita por Mike Dringenberg, que já havia desenhado Sandman, usando pinturas sobre fotos, no mesmo estilo que Dave McKean faz, citando à Xenia Cherkaev, professora de Antropologia que fala sobre a semiose entre a vida humana e a das abelhas e como cada pessoa nos passa da mesma forma que uma flor passa por uma abelha, cada um com seu gosto e cheiro distinto, nos atraindo ou repugnando, deixando sua marca em nós.
É uma pena que analisar extensivamente cada uma das 50 músicas é praticamente impossível, ainda mais se há o interesse de manter o leitor interessado. Para aqueles que realmente gostam da arte de Tori Amos e querem ver como alguns interpretam suas palavras, este livro é obrigatório. Para aqueles que tem uma grana sobrando e gostam de quadrinhos indies, também devido à extensão de autores de altíssima qualidade que figuram neste livro. A pena é que o público em geral não vai ter acesso a este material que só vem para o Brasil através de importação, já que com certeza nenhuma editora vai ter peito para tentar vendê-lo por aqui.