“Delírio é a mais jovem dos Perpétuos.
Ela cheira a suor, vinho azedo,noites tardias e couro velho. Seu reino é próximo, e pode ser facilmente visitado.As mentes humanas, porém,não foram feitas para compreender seu domínio, e os poucos que viajaram até ele conseguiram relatar apenas fragmentos perdidos.
Sua aparência, um amontoado de idéias vestidas no semblante da carne, é a mais variável de todos os Perpétuos. A forma e o contorno de sua sombra não têm relação com a de nenhum corpo que esteja usando. Ela é tangível como veludo gasto. Delírio tende a se tornar borboletas ou peixes dourados, agora e sempre.
Alguns dizem que a grande frustração de Delírio é saber que, apesar de ser mais velha que as estrelas e mais antiga que os deuses, ela continua sendo, eternamente, a mais jovem da família, pois os Perpétuos não medem tempo como nós nem vêem mundos através de olhos mortais.
O poeta Coleridge afirmou tê-la conhecido intimamente, mas o sujeito não passava de um mentiroso inveterado. Portanto, devemos duvidar de cada palavra sua.
Um dia, Delírio também foi Deleite. E, embora isso tenha sido há muito tempo, ainda hoje seus olhos têm matizes diferentes: um é verde-esmeralda bem vivo, salpicado de pontos prateados; o outro é do mesmo azul que esconde
sangue dentro de veias mortais. Ela vê o mundo de seu própria e única visão.Quem pode saber o que Delírio vê através de seus olhos desiguais?”
Lady Delirium, a mais nova dentre os Perpétuos. A senhora do Reino Cintilante, Rainha dos Loucos, dos Bêbados e dos Apaixonados. Há muito que se dizer desta, que um dia já se chamou Deleite, e que no futuro ainda será algo novo.
Neil Gaiman diz que “escrever Delírio, nunca soou como trabalho. Na verdade, ela foi uma das únicas personagens que nunca me causaram nenhum esforço, ela praticamente se escreveu nas páginas. Primeiramente, ao me deparar com aquela figura em uma revista, pensei inicialmente nela como uma figura beligerante. Logo descartei a idéia e decidi ficar quieto e ouvir a personagem, o que funcionou muito bem desde então. A grande verdade é que se existe alguém que realmente é a delírio, esta pessoa sou eu. Simplesmente me calando e ouvindo a mim mesmo, e é isso o que mais gosto nela. Às vezes, eu levava horas para pegar direito um diálogo de Morpheus. Eu escrevia uma linha e depois acabava por poli-la, já que inicialmente eu havia escrito o tipo de coisa que ele diria, mas deveria ter lá a exata coisa que ele iria dizer. Com Delírio, eu apenas fazia uma espécie de ditado. Eu poderia dar a ela uma linha, e ela me retribuiria com uma resposta perfeita ao estilo Zen/Gracie Allen. E então eu simplesmente digitava e dizia, “uau, isso está amável”, e começava a gargalhar comigo mesmo”.
Uma das coisas mais marcantes sobre esta fascinante personagem, é sua mudança de identidade a partir de sua origem como Deleite, antes de entrar no mérito deste discussão, vou dar mais uma vez voz ao mestre (em sua excitante conversa com Hy Bender) no que concerne este tema:
“Muito do crédito pela idéia de Deleite, pertence ao meu amigo Brian Hibbs. Depois do lançamento de Sandman #10 (primeiro capítulo de “Casa de Bonecas”, onde Desejo e Desespero fazem seu debute), Brian me perguntou quem eram os demais perpétuos. Um pouco depois disso, eu optei pela política do “não contar”, mas naquela época, eu respondi: Delírio e Destruição.
Brian me enviou então uma carta, com um desenho de uma bela menina, que dizia “Deleite: ela também deveria ser um Perpétuo”. Eu amei o desenho e decidi que Deleite realmente seria apropriada como um excelente passado para Delírio, por que esta era uma personagem que eu gostaria de manter um senso de fluxo, ela já foi uma coisa, se tornou uma outra e eventualmente ainda irá virar mais uma. Esse estado de fluxo é único a ela, e tem bastante haver com a mesma ter sido a mais nova, praticamente um pensamento à posteriori cósmico.”
Bem, agora irei finalmente iniciar a minha perspectiva dos fatos, em cima deste que seja talvez o mais instigante mistério da série, a transição de Delírio para Deleite. Na mais antiga história de Sandman “O Coração de uma Estrela” (em Noites Sem Fim), temos uma pequena amostra de como era Deleite, quando a mesma interage com Kilala da Luminescência. Podemos perceber já nesta forma original, uma série de características que marcarão seu futuro aspecto. Sua fala já é colorida e muitas vezes confusa. Seu jeito feliz, estranho e cativante também, ainda que dessa vez, pareça haver inocência na mesma, no lugar da loucura.
O melhor momento para entendermos Delírio, é a jornada que a mesma percorre em “Vidas Breves”. Esta se inicia justamente pela realização da personagem que ela está de novo mudando, o que muitas vezes a faz perder o controle de si mesma. Ela decide então buscar por Destruição, outrora o único dos seus irmãos capaz de lhe fazer se sentir confortável consigo mesma. Eventualmente entendemos esse sentimento, em um belo flashback, quando no início da Terra, Delírio vivia sua transição (Sandman #42, pág.22):
“Ela já não era mais Deleite, e as pétalas já haviam começado a cair em seu domínio, se tornando cores viscosas e amorfas, e não havia ninguém com quem ela pudesse conversar… Então ela foi vê-lo. Ela se lembra da luz brilhando dourada na sua barba e nas suas sobrancelhas. Ele colocou seu braço envolta de seus ombros, lá permaneceram, em cima da colina (por que isto era na Terra nos dias de seu amanhecer, e até mesmo nesta época ele já passava muito tempo por lá). E ele disse: “Del, está tudo bem”. E então se calou e ela começou a gargalhar incontrolavelmente. Ele não disse nada, apenas a segurou até que ela retomasse o controle mais uma vez. Eles assistiram o pôr do sol por um tempo. E então ele disse: “Del, as coisas estão mudando”. E ela sabia que era verdade e não havia nada que ele pudesse fazer a respeito.”
Em grande parte, sabemos que antes mesmo de Destruição entender o verdadeiro significado (em um nível ontológico) de mudança, Delírio ali, naquele momento, entendeu o que acontecia com ela. E em grande parte aquilo a machucou, mas lhe trouxe muita sabedoria. Sabemos que a mais jovem dos Perpétuos detém um conhecimento que vai até mesmo além do de Destino, que é limitado por regras e por seu livro (como ela mesmo enfatiza: “existem coisas fora do seu livro, existem caminhos que não estão no seu jardim”).
É bastante interessante quando chegamos ao final de “Vidas Breves” e o Pródigo finalmente acaba por encontrar a sua irmã. Todas as justificativas que ele dá para ter deixado seu ofício, algo que Sonho, teima em aceitar, são repetidas por Delírio, em total compreensão das escolhas de seu irmão. Ela repete para sonho, que “não existem moedas de um lado só”. Coisa que ele parece finalmente entender a partir deste encontro, mas que Delírio, talvez antes de todos, já sabia.
Um outro diálogo bastante interessante da personagem, se faz quando a mesma encontra Sonho (Entes Queridos, Sandman #64, pág.08) quando as fúrias estão prestes a destruir o sonhar, e ela tenta convencê-lo de sair com a mesma para buscar o Barnabás:
“Sonho: Irmã, eu possuo responsabilidades. Eu não posso deixar o Sonhar neste momento.
Del: Você usa demais esta palavra. Responsabilidades. Você já parou para pensar alguma vez no que ela significa? Quero dizer, o que significa para você? Na sua cabeça?
Sonho: Bem, eu uso para referir aquela área da existência sobre a qual eu excerto um punhado de controle e influência. No meu caso, o reino e o ato de sonhar.
Del: Humpf. É mais do que isso. As coisas que fazemos causam Ecos. Suponha por instância que você está parado em uma esquina e admira um brilhante raio em forma de garfo. ZAP! Bem, por anos depois disso, as pessoas e coisas irão parar por ali, na exata mesma esquina para encarar o céu. Elas nem saberiam por o que estão procurando. Algumas delas podem ver um raio de luz fantasma na rua. Outras podem até mesmo ser mortas por ele. Nossa existência deforma a realidade. Isto é responsabilidade.
Sonho: Delírio…?
Del: Oh, eu sei sobre muitas coisas. As pessoas pensam que não, mas eu realmente sei. “Eu sei mais coisas sobre nós do que qualquer um de nós, e está é apenas uma das coisas que sei.”
Este show de moral em cima do transtornado Sonho, deixa bem claro o que eu acabei de explicitar (e também parece deixar ainda mais evidente, a razão para Destruição acreditar que os Perpétuos deixassem suas obrigações). Inevitavelmente, todos eles deformam a realidade o tempo todo apenas por existirem. Algo que suas próprias regras que parecem reger suas existências não permitiriam. Certa vez, li uma estonteante afirmação do Sr. Gaiman ao responder sua leitora sobre uma teoria do porque Deleite teria se tornado Delírio:
“Deleite aprendeu muitas coisas, ela aprendeu algo sobre o significado de ser um Perpétuo. Como eles incorporam seus opostos tão bem quanto suas funções. E esses conhecimentos, a sua compreensão, fez com ela mudasse dos lados da moeda. Apenas poucos Perpétuos realmente sabem a verdade sobre si próprios. Até o ponto em que a história foi contada, é mostrado que só Destruição e Destino compreendem isto. Destruição foi embora no momento em que descobriu, e destino talvez sempre tenha sabido, embora não pudesse fazer nada.”
Delírio obviamente foi além deles. Ela transcendeu o livro que contêm todas as coisas do universo. Ela transcendeu a todos no conhecimento que detém sobre seus próprios significados, mas ela foi destruída no processo. Talvez, quando mais uma vez ela mudar, e isso vai acontecer, este conhecimento amadureça, e sua mente se recupere um pouco. Barnabás e seu dono parecem guardá-la e confortá-la enquanto suas crises se agravam, a mudança parece próxima.
Há pouco para se dizer de Delírio além do que foi dito. Fora toda essa história de sabedoria e loucura, nos resta apenas o fato de que a personagem possui as melhores falas e tiradas da série. São tantas que não dá para citar apenas uma. A forma como ela quebra o gelo dos momentos mais tensos de “Vidas Breves” ou “Entes queridos” (em grande parte os dois arcos fundamentais da série), como ela é capaz de nos animar de maneira tão incrível, só nos faz gostar mais e mais de Delírio. Admiro muito suas qualidades, existe muito de Delírio em minha vida e nas pessoas que amo.
Vale dizer também, que como fiz com todos os perpétuos, gostaria de usar algumas referências mitológicas para a personagem, mas simplesmente parece não haver. Loki não é tão amável, Mania e as demais “loucuras” gregas) não são tão divertidas, nada parece apropriado (por favor me iluminem). Delírio, como o próprio Neil disse, é verdadeiramente ele, sem máscaras, quando ele pára para se ouvir. O que faz da personagem, de certa forma, o coração da série.