Especial Camelot: Camelot 3000 revive o mito no futuro

Camelot 3000 pode não ter sido a primeira história a reviver e reler o clássico mito do Rei Arthur e Camelot mas foi a primeira em quadrinhos totalmente dentro deste universo e, editorialmente falando, foi a primeira em uma série de iniciativas dentro da mídia que mudaram a forma de lançar e vender quadrinhos para sempre. Roteirizada por um americano e desenhada por um inglês esta união de colono e colonizador resultou num clássico das HQs que eleva-se ao nível literário facilmente.

Mike W. Barr estava em ascensão dentro da DC Comics no ano de 1982 e em sua mente o mito arturiano personificava o máximo do heroísmo. Numa época em que filmes revolucionários como Guerra nas Estrelas (Uma Nova Esperança e O Império Contra-Ataca já haviam sido lançados) e o fantástico e filosófico Blade Runner – O Caçador de Androides, o ambiente tornou-se propício para Barr fazer uma história que envolvia, pela primeira vez, ficção científica dentro de uma lenda secular e que nada tinha a ver com este tema. Porém o autor viu-se num problema: além da mistura de temas ser controversa ele se sentiu encurralado por ser um autor americano trabalhando numa releitura de um mito inglês famoso em todo o mundo. Para fazê-lo ele precisava da ajuda de alguém que fosse da Grã-Bretanha para garantir a autonomia e a qualidade do trabalho. Surgiu então um ainda desconhecido Brian Bolland.

Bolland não era conhecido nos Estados Unidos naquela época e esta seria uma excelente chance de exibir seu trabalho para um público muito maior e, de quebra, garantiria a presença bretã numa história que remetia às raízes de um grande mito. A DC Comics aproveitando toda esta chance resolveu criar um formato que nunca havia existido antes, denominado de prestige. Este formato garantia uma altíssima qualidade no papel e na impressão e tornou-se uma febre em toda a década de 1980 com edições especiais, minisséries e graphic novels. Além disso foi a primeira minissérie vendida exclusivamente através do recém criado Direct Market (hoje única forma de venda das HQs nos EUA), que distribuía as revistas para as comic-shops de todo o país e de lá os leitores comprariam, sendo de responsabilidade de cada loja cuidar das edições que sobrarem no estoque.

Com toda esta fórmula inovadora e arriscada em todos os sentidos a dupla criativa deu início a esta nova aventura pela Távola Redonda e pelos lindos pastos do reino de Camelot, certo? Quase. Os belos pastos ingleses foram trocados por um cenário futurista, sinistro e distópico. Estados Unidos, China e União Soviética comandavam um mundo dividido em dois ideologicamente. Barr obviamente aproveitava-se do ambiente universitário do qual havia saído há pouco tempo e criticava implicitamente os governos de Ronald Reagan (EUA), Yuri Andropov (URSS) e Deng Xiaoping (China) em caricaturas representadas claramente em Camelot 3000. O pano de fundo estava armado. O contexto bem colocado e localizado. Era hora de trazer o Rei Arthur de volta e começar a jornada.

Diz a lenda do Rei Arthur que ele voltará à vida quando a Inglaterra estiver em grande necessidade. No ano 3000 os alienígenas invadiram a Terra e nossas defesas estão fracas sob a liderança de Jordan Matthew, o diretor de segurança da Organização das Nações Unidas (ONU). O que pouca gente sabe é que o homem é aliado de Morgana Le Fay em pessoa, sendo que ela é a comandante das forças alienígenas. Enquanto isso o filho de arqueólogos Tom Prentice acaba descobrindo a tumba do verdadeiro Rei Arthur no Stonehenge. Na necessidade inglesa a lenda se torna realidade e líder volta à vida, trazendo consigo o Mago Merlin, com quem tenta recuperar sua espada Excalibur, mas ela deve ser tirada da pedra mais uma vez.

A espada reaparece num local público e logo a mídia transforma o evento numa explosão de notícias que deixa os esperançosos com os corações cheios e os céticos cada vez mais duvidosos: o Rei Arthur Pendragon existe de verdade e ele está vivo! É então que os outros personagens clássicos começam a reaparecer, reencarnados em pessoas reais e de todos os cantos do mundo, numa ideia do autor de globalizar o sentimento de justiça. A comandante das Forças da Terra Joan Acton torna-se Guinevere; o rico francês Jules Futrelle dá vida a Lancelot; um pobre coitado em Chicago vira Kay; um Neo-Humano geneticamente alterado torna-se Percival; um samurai japonês dá vida a Galahad; um africano vira Gawain; e Amber March, que está prestes a se casar com um herói de guerra, torna-se a reencarnação de Tristão. Com esta última encarnação, a de um homem num corpo de mulher, temos o primeiro contato com o personagem mais interessante de Barr nesta releitura.

Todo o aspecto apocalíptico da história é o que realmente interessa deste pano de fundo pois todo o restante é bastante conhecido, ou então ganhou uma roupagem um pouco fraca. Isto não é desmerecer a história, muito pelo contrário. O problema de Barr aqui é como dar credibilidade ao novo solo que ele cava com suas idéias. Enquanto a utilização de temas como a política mundial, o escravismo dos alienígenas por Morgana, o transsexualismo e o lesbianismo – a amante de Tristão insiste na relação lésbica com ele, que na verdade é ela – torna o conto adulto e questionador de uma forma muito positiva, a parte que nos remete ao clássico acaba sendo um pouco boba. Mesmo que sejam meros escravos, os alienígenas são inimigos um pouco bobos e não oferecem a resistência num nível esperado. A origem deles só será desenvolvida muito no final e, mesmo que gere total simpatia e compreensão do leitor, acaba sendo um pouco tarde demais.

Tirando estes defeitos e o fato da história ser extremamente datada – as críticas políticas são muito localizadas e a batalha a nível espacial ainda era uma novidade – o que temos é uma narrativa continuada que faz o leitor pedir mais ao final de cada capítulo. Se por um lado temos alguns problemas no pano de fundo do maxi conto, por outro lado temos um positivo desequilíbrio com o levante de temas polêmicos pela primeira vez em quadrinhos mainstream dando a Barr e Bolland uma credibilidade não apenas como criadores mas como críticos sociais e partidários da igualdade. Rei Arthur é um rei do mundo e não mais apenas da amada Inglaterra. Como cidadão do mundo e com a Távola Redonda revivida de forma globalizada, nossos heróis estão prontos, de fato, para o futuro.

O que parecia impossível, que é reunir o mito lendário ao sempre inovador fronte da ficção científica, tornou-se um belo conto. Ainda hoje Camelot 3000 é uma história que deve ser lida. Mesmo que haja elementos muito datados, a aventura e sua mensagem vão durar tantos anos quanto o verdadeiro mito. Recentemente ela foi relançada numa belíssima edição de luxo pela editora Panini Comics no Brasil, que valoriza muito a história e a linda arte de Brian Bolland. Vale a conferida!

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