[aviso: este texto contém a descrição da história, quem não quiser spoilers, não leia, ao final do post há informações sobre o filme]
No princípio, Estigmas não passava de um esboço de novela jamais escrita. Com Lorenzo Mattotti, tornou-se esta história visionária, que para nascer necessitava, evidentemente, dos seus desenhos. No fundo, mesmo que nenhum de nós dois seja pobre, temos algo em comum com este personagem embaraçoso e sem nome de Estigmas: somos apátridas, pouco inclinados a nos misturar com os semelhantes – em lançamentos ou em eventos culturais. Fazemos o possível para parecer simpáticos, mas preferimos nos manter afastados das mundanidades. Na Itália, as más-línguas dizem que é nosso mau-caratismo que nos liga.
– Cláudio Piersanti.
Estas palavras acimas consistem no texto de quarta capa do livro (ou naquele resumo que se pode ler atrás de alguns livros) e apresentam ao mesmo tempo um pouco do jeito do autor e da história em si. Mas quem é Cláudio Piersanti e Lourenzo Mattotti (além de italianos reclusos)? E quem seria este tal personagem sem nome?
Bom, o roteirista, Cláudio Piersanti é um escritor italiano responsável por trabalhos como o romance Casa di nessuno (1981), porém não é alguém com trabalhos que chamem muito mais a atenção; o verdadeiro coração por trás desse trabalho, ao meu ver, é Lorenzo Mattotti. Ele trabalhou junto com Piersanti na contrução da história e foi capaz de dar um toque extremamente importante à ela com seus desenhos. Este ilustrador possui um grande talento e já era conhecido no mundo das HQs devido à uma adaptação de O médico e o monstro (Dr. Jekyll & Mr. Hyde), que lhe rendeu um Eisner. Eu ainda não tive a oportunidade de lê-la, mas pelo que pude encontrar da obra, as imagens parecem extremamente promissoras (como esta acima). Caso queiram dar uma olhada mais minuciosa no trabalho de Mattotti, ele possui um site oficial com diversos trabalhos.
Essa pequeníssima introdução sobre os responsáveis pelo trabalho, por enquanto, é o suficiente, falta agora descobrir quem é o tal “personagem sem nome”. Vamos chamá-lo de P. P., um beberão que trabalha esporadicamente e, por nenhum motivo aparente, acorda um dia com chagas em suas mãos, logo após um sonho que eu definiria como metade sombrio, metade confuso, metade epifânico. A primeira coisa que veio a minha mente foi: bom começo. Imagens impactantes, ótima utilização dos traços fortes e fracos, bom texto e história promissora. Só esperava que não fossem colocar o deus católico como segundo personagem principal.
P. vai a um hospital e tem seus ferimentos tratados, mas eles estranhamente não cicatrizam, e continuam sangrando de tempos em tempos. As pessoas são supersticiosas e, acima de tudo, fofoqueiras, e a notícia se espalha. Santinhos, velas, estátuas de santos e mexeriqueiros aparecem na porta de P., que se torna cada vez mais grosso, bebe cada vez mais e afunda-se num poço de confusão. Ele é o clássico grosso, que nunca teve nenhuma educação, simplesmente não consegue conceber o porquê daquelas marcas apareceram exatamente em suas mãos. Ele inicia um período de auto-destruição mais intenso que o normal.
P. acaba se desentendendo no bar em que trabalha e sai de sua cidade, não agüentando mais, segue a procura de um tio (única pessoa que parece se importar com ele), vira morador de rua no processo e se sente confortável com isso. Esse é um momento interessante do texto: ver um homem genuinamente satisfeito por não ter nada, apesar de, o que eu acho que deveria ser importante para mantê-lo nesse estado, ele ter uma meta. Acaba a parte um.
Vou aproveitar esse momento para fazer um adendo sobre o traço de Mattotti. Pelas imagens desse post pode-se observar que é um estilo que nunca entraria em uma história de super-heróis, por exemplo. Geralmente ele está relacionado a hqs independentes. Seu traço parece muitas vezes simples rabiscos e em diversos momentos surge aquela idéia presunçosa do “eu poderia fazer melhor”. Bom, não poderia. As imagens muitas vezes super-poluídas de traços criam uma ambientação perfeita da rua suja na qual esse personagem anônimo vivia, ou melhor, não apenas a rua, toda sua vida é suja, o que piora ainda mais com a chegada das estigmas e, conseqüentemente, do sangue.
Os ângulos, a movimentação dos personagens, a utilização dos quadros, todos esses elementos, se você perceber bem, são desenvolvidos de formas muito interessantes, diferentes. Particularmente eu gosto muito das duas cenas nas quais aparece a mão dele em close, mostrando a ferida, e do jeito dele desenhar as sombras.
Seguindo com a história: P. chega a um circo (mais precisamente um Carnaval, em inglês, mas em português não há como distinguir os dois) e consegue ter um momento de ascensão, se casando e ganhando emprego fixo. Nesse período suas chagas param de sangrar. Mas, como diz o ditado, quanto maior a subida, maior a queda.
Aqui temos um dos meus ambientes preferidos. Eu simplesmente adoro Carnavals, com suas tendas, atrações, tanto as verdadeiras quanto as falsas, e brinquedos; e acho o ambiente simplesmente perfeito para o mundo das hqs, para as que tem um cunho mais fantasioso e surreal e para as de tom pesado.
Bom, a queda de P. não tarda e o melhor é interessante ver a opinião do personagem sobre a situação: “Era o diabo em pessoa que tinha cismado comigo… Ele vai chegando na ponta dos pés e de repente dá o bote” , mas é claro que isso é apenas uma congectura, não fica nada claro na história. O desandar da situação acaba com a morte da sua mulher, o que gera um curto na mente de P. Essa questão de romances, tanto em hqs quanto (e principalmente) em filmes sempre me deixou nauseada. Em geral os romances são apresentados nas histórias de uma forma superficial, porque “tem que ter um romance”, ou como grande forma de redenção ou salvação. Nesse quadrinho não. É um casal comum, sem necessidade de mostrar grandes cenas sentimentalóides ou de brigas e pode-se ver não uma mudança súbita na postura do personagem ao contrário, Estigma consegue demonstrar em poucas páginas um desenrolar de posicionamentos e de relação interpessoal extremamente real, sem forçassão de barra.
P. para em um hospício (outro dos cenários que eu mais gosto) cuidado por freiras, e lá pode-se notar o quão fundo alguém é capaz de chegar ao longo de uma vida de sofrimentos e de confusões. Lá ele é tratado e acaba por ter outra epifania, esta ainda mais bem desenvolvida do que a outra. Chega-se aí no ápice da história e da arte de Mattotti. Mistura-se oração e imagens no local mais surreal: a mente. É narrada a redenção do personagem anônimo e pecador, que pode ser qualquer um de nós, através do batismo, de um batismo de sangue. Dependendo de seus olhos, pode-se ver aí uma possível explicação para as estigmas do personagem, mas isso não é apresentado de forma clara. E, apesar da temática extremamente cristã do texto (claro, é uma oração) e da temática, as imagens que narram o renascer do personagem me lembram a estética hindu e budista.
Ao final do quadrinho, o personagem aceita suas chagas e aparece contando sua história, vale colocar aqui um comentário de Mattotti ao final, retirado de uma entrevista (que vale muito a pena ler inteira) que ele deu ao Overmundo.
Eu não creio que o final seja pessimista. Nós conversamos (Mattotti e Piersanti) muito sobre o final, fizemos cinco ou seis diferentes. Tudo era se perguntar sobre o personagem e tudo o que ele viver, era se perguntar sobre a maneira para que tudo fosse natural. Pensamos num final cínico, em que ele contava sua história no show business, num programa de tevê ou numa revistinha de fofocas. Também pensamos na saída espiritual, onde ele seria um pequeno guru. Mas decidimos pelo final publicado, pois o personagem que, ao fim, simplesmente aceita o que há dentro de si e que não pode ver. E isso é aceitar o peso da vida, o peso da responsabilidade, de viver o dia-a-dia. Que pode ajudar as pessoas nas mínimas coisas.
Depois falar desse quadrinho, um dos melhores que eu li nos últimos tempos, dou uma notícia que não posso afirmar ser boa ou não: está sendo produzido um filme sobre ele. Eu não tinha ouvido falar sobre este até procurar alguns elementos para este post.
O filme sairá pelas produtoras Jaibo Films / IB Cinema / Nadir Films e o responsável pela adaptação é um cineografo chamado Adán Aliaga, eu particularmente não conheço o trabalho dele, que parece ser bastante restrito e cuja principal obra é La casa de mi abuela, um documentário espanhol. Não há muitos comentários sobre o filme, que começou a ser produzido por volta de abril de 2007, e a melhor fonte de informações sobre o mesmo é o blog de Adán.
Nele pode-se ver que o filme ainda está ainda em seu começo e havia a intensão de iniciar as filmagens em abril deste ano e, apesar de não haver informações posteriores confirmando o início das filmagens, foi lançada nessa semana a primeira imagem, ainda que esta esteja destinada a aparecer nos créditos, não no filme em si.
Estou um pouco ansiosa para ver o resultado, pois Adán informa que o filme será muito mais panorâmico que a hq e também que serão inseridos elementos dramáticos inexistentes na história original, o que eu acho uma péssima notícia. Bom, agora é apenas esperar para ver. Deixo abaixo um storyboard (dos créditos) e a imagem que foram postados no blog.
Bem acredito que apesar de muito bem escrita e passional a resenha entregou demais o que a hq se trata, algo que sempre deve se evitar fazer com resenhas de narrativas. Ainda sim, suas palavras foram instigantes o suficiente para fazer qualquer um com bom senso e bom gosto desejar ler esta obra.