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Grama – narrativa gráfica coreana lança uma luz inebriante sobre a II Guerra

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Há certo momentos históricos que não são contados oficialmente. Alguns quando lembrados são um vislumbre do que realmente aconteceu e outros talvez nunca sejam vistos.

Seja por medo da reação anos depois ou simplesmente pela incapacidade de se olhar no espelho. Embora seja terrível, o período em que o Japão se expandiu pela Ásia no século XX; muito das atrocidades cometidas foram relatadas, mas quase nada sobre o caso das mulheres de conforto.

Meninas e mulheres forçadas à escravidão sexual e feitas para se tornarem “mulheres de conforto” ou ” mulheres de alivio” (termo pejorativo usado como eufemismo para prostituta) pelo Exército Imperial Japonês em territórios ocupados antes e durante a Segunda Guerra Mundial.

A graphic novel

 

A biográfica Grama, lançada pela Pipoca & Nanquim, é uma história em quadrinhos coreana, de Keum Suk Gendry-Kim é uma narrativa gráfica difícil, graciosa e humilde da vida de uma dessas mulheres.

Através de uma diagramação simples, a autora lança uma luz profundamente pessoal sobre os efeitos da guerra durante uma dos períodos mais debatidos da história asiática do século 20.

A autora segue as memórias de uma ex-mulher de conforto, a coreana Granny Lee Ok-sun. Com base nas entrevistas que ela deu enquanto visitava a House of Sharing na Coreia do Sul, uma casa de repouso/museu para sobreviventes daquele período nefasto. Gendry-Kim recaptura sua infância, com as lembranças familiares com um carinho tão bonito, que o encanto é sentido a cada cena, apesar das dificuldades que sua família enfrenta.

Na esperança de dar a ela uma vida melhor, os pais de Ok-sun a dão para adoção e sem saberem, enviam-a por um caminho que a leva a ser vendida duas vezes até se tornar uma escrava doméstica. Ok-sun vive muitos anos na pobreza da Coreia ocupada até que as forças japonesas a levam para a China, com outras meninas, para se tornarem escravas sexuais.

Cada página é descrita com cuidado, em especial as violentas, como no caso do estupro, aqui como um grande respingo de tinta preta espalhando-se sobre a página de seis painéis com o rosto jovem e apavorado de Ok-sun em primeiro plano. Ok-sun também revela outros horrores que as jovens deveriam suportar: o contágio de DSTs, a falta de absorventes higiênicos (ou permissão para parar de “trabalhar” durante a menstruação), gravidez, o descuido com a proteção e até mesmo a promessa de ser verdadeiramente amada por alguns dos soldados.

Após o fim da guerra, há um sentimento de paz encontrado nas palavras de Ok-sun. Uma sensação relativa pois a legitimamente é colocada nas mãos dos políticos e daqueles no poder para corrigir as atrocidades que ocorreram nesses campos. Embora tenha sido considerado o cuidado dos sobreviventes dessas atrocidades, mulheres como Ok-sun ainda imploram por justiça anos depois.

Embora existam cenas repetidas de estupro e a brutalidade caótica que acompanha a história em quadrinhos, todos as agressões são tratadas com uma mão respeitosamente honesta, criando uma narrativa gráfica que tenta o seu melhor para transmitir o peso e a confiança por trás da história que está sendo contada.

Ao longo de Grama, a autora faz questão de abordar em uma página os pensamentos atuais de Ok-sun sobre o que aconteceu com ela, como um retrato de seus sentimentos guardados por todos esses anos. Isso permite que a história se aprofunde ainda mais e compararmos o pensamento quando tinha 15 anos na época de seu sequestro e o atual quando já estava com 90 anos.

Apesar do uso contemporâneo de apenas pincel e tinta preta, Gendry-Kim recria habilmente a dor experimentada na vida de Ok-sun enquanto expressa o lado dela, bem único, sua compaixão e seu humor. Raramente é visto em memórias biográficas a capacidade de retratar plenamente a pessoa que viveu o conto, e Gendry-Kim claramente se deu ao trabalho de fazer disso um conto de vida em vez de apenas um conto de sobrevivência.

Com um traço impulsionado pelo movimento despreocupado do pincel, a arte é simples e irreverente, funciona bem para a trama, mas o destaque fica para os personagens, sem nenhuma elaboração de cenários mais grandiosos, a paisagem natural flui ao acaso e indiscriminadamente. E cada quadro desenhado parece ter sido feito para suavizar a história.

Como narrativa em si, a história é forte e direta, vale pelo resgate histórico, pela necessidade de reconhecer que algo assim aconteceu e que devemos estar prestando atenção e respeitando o agora – mesmo que seja décadas depois do fato, mas está abaixo de outros materiais similares, como Persépolis ou Maus. Entretanto possui um enredo simplista, unidimensional, que pode não prender a atenção de alguns leitores.

A edição da Pipoca & Nanquim possui um acabamento gráfico caprichado, um livro que ficou realmente bonito, compondo um primor de edição.

“Nunca conheci a felicidade desde o momento em que saí do ventre de minha mãe.”

Grama é um conto gráfico duro, sombrio e despojado que não tem rodeios. Keum Suk Gendry-kim ao narrar a vida de uma sobrevivente, por meio de uma arte simples que mistura o abstrato e o minimalista, e apesar de alguns aspectos não tão bons, conta uma história que representa a vida real não contada de inúmeras mulheres.

As situações apresentadas são terríveis, mas faltou um aprofundamento – os eventos acontecessem e passam rapidamente. Ainda que não seja uma obra prima, vale a leitura.

Nota: Ótimo – 3.5 de 5 estrelas

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Por
Cadorno Teles -

Cearense de Amontada, um apaixonado pelo conhecimento, licenciado em Ciências Biológicas e em Física, Historiador de formação, idealizador da Biblioteca Canto do Piririguá. Membro do NALAP e do Conselho Editorial da Kawo Kabiyesile, mestre de RPG em vários sistemas, ler e assiste de tudo.

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