Artigo escrito por Estevão Ribeiro
Peço a palavra como quadrinhista brasileiro. No último domingo fomos surpreendidos pela suspensão das atividades do Site Bigorna, que dedicava boa parte de seu conteúdo voltado ao quadrinho nacional. Apagando as luzes e colocando as cadeiras em cima das mesas temos o Márcio Baraldi, um cartunista com uma larga produção autoral, colocando entre os motivos do fim do site em todos nós, editores, autores e leitores.
A queixa dele resume o mercado brasileiro de quadrinhos está despencando e que nos contentamos com tiragens de 500 exemplares vendidos como artesanato indígena. Ele também nos culpa pelo politicamente correto. Nesta parte eu me considero culpado. Sou politicamente correto a ponto de, por exemplo, nunca usar a expressão “artesanato indígena” para efeito de comparação. Para mim essa visão é no mínimo racista. Basta trocar a palavra “indígena” por japonês, árabe ou qualquer nacionalidade para vermos o peso que um autor pode dar ao empregar certas palavras.
Mas não é exatamente sobre os apontamentos do Baraldi, sempre gente boa pela internet, que eu vim falar, a convite deste site. Vim expor a minha visão sobre o mercado de quadrinhos no Brasil. Quero deixar claro que o que descrevo aqui não é embasado em pesquisas ou estudos minuciosos, mas sim pela vivência de 12 anos com a parte que me coube da arte no Brasil.
Ganhei meu primeiro salário com quadrinhos aos 20 anos, roteirizando histórias próprias para o jornal capixaba Notícia Agora. Eu escrevia 30 páginas de roteiros em histórias curtas, divididas para três ilustradores. Depois eu as diagramava, enviava para o jornal e ganhava um pouco mais que um salário mínimo da época. A experiência no jornal Notícia Agora durou 13 meses, mas por causa das baixas vendas do periódico eles fizeram alguns cortes, e a sessão de quadrinhos é sempre a primeira a ser sacrificada, após 386 páginas de quadrinhos produzidas. Foi a mais significativa lição aprendida.
Depois disso minha vida foi uma perseguição constante ao sonho de escrever quadrinhos, dando cursos, fazendo eventos, enviando projetos para editoras, até publicar a minha primeira revista no mercado nacional, em distribuição em banca: Tristão, um vingador mascarado com uma lágrima negra escorrendo pelo olho esquerdo. Foi memorável ver meu trabalho nas bancas, mas as vendas não foram boas e o projeto foi engavetado. Lendo a história hoje ainda consigo achá-la boa, mas não o bastante para imprimir 30 mil exemplares dela. Eu contei uma boa história para um cara com 21 anos e não tive sorte de estar em sintonia com o público da época. Eu continuei investindo no Tristão, achando que um dia ele me daria retorno financeiro que mudaria a minha vida. Doze anos depois, esse dia não chegou. Ainda.
Mas muita coisa aconteceu nesse tempo:
O Brasil perdeu e ganhou editoras, a Abril perdeu a Marvel e a DC, empobrecendo um pouco o seu catálogo, A turma da Mônica mudou de casa (deixou a Globo pela Panini), Ziraldo coloca seus quadrinhos novamente na praça, invasão dos mangas, Disney fechando estúdios no Brasil e no mundo… Ou seja, o mundo mudou. Os artistas se adaptaram melhor – ou mais rápido. Há quem diga que eles agiram como vendidos ou como “mãos de obra barata” dos gringos, fazendo apenas o trabalho braçal, deixando a criatividade para as editoras. Mas a maior parte deles conseguiu construir suas casas e constituir patrimônio trabalhando assim.
Observo que entre alguns dos meus colegas de traço a dificuldade de entender que desenhar e escrever é um trabalho. Claro que você usa de um talento e de habilidade para isso, mas ainda assim precisa de uma rotina, atender uma produção, porque a menos que esteja fazendo por hobby, o fruto de horas de dedicação será comercializado. Logo, desenhar e escrever é negócio, que como tal, estão sujeitos à regra básica do mercado: a lei da oferta e procura.
Se o mercado quer um tipo de produto, você pode até oferecer outro, mas não espere um sucesso estrondoso, a não ser que você tenha muita sorte ou invista muito. Você pode oferecer seu personagem quantas vezes quiser, mas se você não convencer o editor que o leitor quer o seu material, ele não vai investir o dinheiro dele. É simples. O que eu estou falando são frases que ouvi ou li dos próprios editores, toda vez que tinha um material recusado. E quer saber? Eles têm razão!
Não é muita audácia eu querer que alguém invista dinheiro em minhas idéias? Se eu me presto a isso, se vou para frente de um editor e o proponho a impressão de 5 mil, 30 mil exemplares de uma revista minha, ela tem que ser, no mínimo, ótima. No curto período em que trabalhei como roteirista freelancer do Mauricio de Sousa (não que eu tenha parado, mas a produção da tirinha Os Passarinhos tem me tomado muito tempo), fiz cerca de 12 histórias e 6 foram recusadas. Eu pensava em boas piadas, mas ou o mote já foi utilizado, ou tinha algo indevido ou simplesmente não agradava.
Certa vez eu escrevi a história que eu julgava definitiva para o Horácio. Minha vontade é que aquela história fosse para o MSP 50, não era uma história para uma revista mensal, mas para um trabalho memorável. Então, eu a enviei para o Mauricio e para o Sidney Gusman, responsável pelo planejamento editorial das revistas da turminha. Gusman aceitou a história na hora para o MSP Novos 50, mas como eu também havia mandado para o Mauricio, ele adorou a história e disse que ela sairia na edição mensal, porque o Horácio não tinha uma história linda assim há tempos. Detalhe: o Mauricio escreve e desenha a maior parte das histórias do Horácio.
Quando o Sidney me disse o ocorrido, eu fiquei triste por um segundo, mas me senti honrado por ter tocado o coração do criador do dinossaurinho. Para mim, era a história definitiva do personagem num álbum de luxo. Para ele era uma linda história para uma revista mensal. Naquele momento eu vi o quanto de mim teria que dar para atingir tantas pessoas quanto Mauricio atinge: Eu tenho que fazer a melhor história da minha vida todas as vezes que eu me propor escrever uma história.
O que vejo hoje é um bocado de pessoas tentando escrever sua melhor história. Nem todos estamos preparados para isso, mas as edições que estamos produzindo enquanto tentamos é, no mínimo, interessante. E sabe o que é melhor? Há MERCADO para isso. Tanto para o comercial quanto para as experimentações. Claro que há um preço para isso também. Não espere que seu trabalho, cujo o público não atinja mais de 1000 pessoas, venda 5000 exemplares.
Muitos falam que, se quadrinhista quiser viver de quadrinhos morre de fome. Quem quer ganhar dinheiro mensalmente desenhando quadrinhos pode procurar as revistas consolidadas, agências de publicidade responsáveis por confecção de cartilhas institucionais. Isso vai moldar seu o seu traço e narrativa, enquanto desenvolve seus projetos. No Brasil, nos Estados Unidos e no Japão é assim. Aliás, uma coisa que autor brasileiro adora fazer é comparar o seu trabalho sem editora com os gigantes da Marvel e DC, esquecendo que existem DEZENAS de editoras minúsculas onde seus editores colocam sua tiragem de 500 exemplares na mesa de uma Comicon da vida e tenta vendê-los. O mesmo para os mangas. Um bem sucedido desenhista no japão pode ganhar em média $ 100/170,00 por página, mas muitas vezes trabalha em condições complicadas, enquanto a fama não vem. Se é que ela vem.
Temos que lembrar que só vemos aqui o que deu certo. Enquanto exibimos com orgulho nossas derrotas e culpamos as editoras, ignoramos os derrotados lá de fora para que o ofício que escolhemos pareça menos duro, mas não é. Eu me lembro de ter visto pelo menos três campanhas nos últimos meses sobre artistas americanos que leiloam páginas para ajudar colegas ou viúvas destes para que não sejam despejados de suas casas. Por outro lado, cada vez que vemos um novo trabalho do Mauricio de Sousa o vemos como exceção. É impossível ler um texto sobre mercado de quadrinhos no Brasil sem citar um dos maiores nomes do quadrinho nacional sem o usar as palavras “exceto o”, “fora o”, “sem contar o Mauricio”.
Que tal deixássemos de tratar o mestre Mauricio como exceção e o transformássemos em regra?
Todos nós devíamos analisar e ver onde ele acertou, quais a soluções que ele arrumou para cada adversidade ou crise passada no mercado, como ele tem se renovado… Boa parte da vida do pai da Mônica está aí, na nossa cara. Preferimos virar as costas a seguir a trilha.
Mas sabe quem está seguindo a trilha? Fabio Yabu. Ele soube usar os recursos a seu favor (internet, TV) e hoje as Princesas do Mar são produzidas em parceria com outros países e ainda tem linha de produtos em qualquer loja de brinquedos. Será que ele vai acabar virando também uma exceção? E os Gêmeos Bá e Moon, que acabaram de ganhar 2 prêmios internacionais por um trabalho escrito por eles e publicado na Vertigo/DC? E a enxurrada de tiristas que temos, publicados lado a lado com Garfield, Calvin e Haroldo, Zoe e Zezé, Recruta Zero, até o ano 2000 reis absolutos dos jornais, compilados em álbuns?
E os quadrinhos autobiográficos, grandes diários ilustrados, registros cotidianos, bem recebidos pelos leitores de grandes editoras? Ainda há resistência? Claro! Mas ninguém recusa um bom trabalho, senhoras e senhores. Façam a melhor história da sua vida, quadrinhistas. Alguém com certeza irá publicá-la neste Brasil.