“Quando a primeira coisa viva existiu, eu estava lá esperando… Quando a última coisa viva morrer, meu trabalho estará terminado… Então, eu colocarei as cadeiras sobre as mesas, apagarei as luzes, e fecharei as portas do universo, enquanto o deixo para trás…”
Morte dos Perpétuos. Certamente o personagem mais popular de toda a série (o que é inclusive ilustrado em nossa enquete). Existe muito o que falar sobre a mesma, mas antes de começar minhas próprias observações, vou iniciar com as idéias e motivos que deram origem a personagem como são descritos por Neil em sua entrevista para Hy Bender (The Sandman Companion).
Ela foi criada de forma muito rápida, ainda em 1987 no início da concepção de Sandman. Segundo o autor, duas das primeiras coisas na folha de rascunho eram “Portões de Chifres e Marfim” seguido por “Irmão de Morte”. Entre a sucessão de idéias que se seguiu foram a formulação de dois irmãos, Sono e Morte (uma alusão clara ao irmãos Gregos, filhos de Nix, Thanatos e Hipnos). Pensando a respeito ele concluiu que Morte deveria ser sua irmã, uma figura feminina.
A respeito de sua personalidade, Neil afirmou que estava um pouco cansado “da já tradicional personalidade das representações antropomórficas de Morte, em sua maioria, assustadoras, sem humor e implacáveis”. Ele já possuía um personagem principal que era alto, pálido, obscuro, sem humor e “byrônico” em um sentido pós-adolescente, ou em outras palavras, com todas as características usualmente rotuladas para um personagem como a Morte. “Eu sabia que o leitores esperavam que sua irmã fosse exatamente como Sandman, apenas maior, mais obscura, bastante masculina. Então eu resolvi virar suas expectativas de ponta-cabeça, e colocar também um pouco de contraste, fazendo Morte pequena, engraçada, legal e gentil”.
A personalidade de Morte faz ressonância com um tema central da série, que é a natureza do que significa responsabilidade. “Por exemplo, enquanto Sandman é capaz de mudar apenas um pouco, por que sente encarcerado por seus deveres e obrigações, eu queria um personagem que não tivesse problema nenhum com o conceito de responsabilidade. Morte simplesmente faz o que faz. Ela já está em seu ramo há tanto tempo, que é muito habilidosa com ele, trabalhando com charme e bom humor”. No artigo sobre as origens estéticas dos personagens eu já expliquei de onde vêm sua aparência como a fofa menina gótica.
Entrando agora no campo da discussão a respeito da Morte em si, existe um fator bastante interessante que é pouco “visualizável” em Sandman: a função da personagem como alguém que também gera a vida. Existem alguns indícios de que ela também cumpriria esse papel, o primeiro deles, está na “Canção de Orpheus”, quando Destruição ajuda seu sobrinho a encontrar sua tia. Ele afirma que existem duas formas principais, morrendo ou nascendo, mas que os humanos nunca parecem se lembrar do primeiro contato com ela. Já na história de Prez, quando o personagem morre, ele se vê diante da morte e sente familiaridade: “Nós já nos vimos antes?” e ela responde que “Sim, uma vez”. Outro indício claro se encontra em seu pingente, um Ankh, símbolo da vida na cultura egípcia. Agora talvez o fator mais importante, ao contrário do usual, Morte é a única que nunca é nomeada pelos membros de sua família. Sonho, assim como os demais, comum mente chama por Destino, Desejo ou Delírio, a única exceção é Morte, que é referida por todos apenas como “minha irmã” ou “minha irmã maior”. Gaiman fala um pouco a respeito disso, dizendo que só chamamos a personagem assim por que é como os demais seres vêem a mesma. Os perpétuos mais conscientes, sabem que chamá-la de Morte seria limitar suas funções, pois ela faz muito mais coisas além de tirar vidas.
A partir desta perspectiva podemos realmente pensar na irmã mais velha, como uma portadora da vida, um presente que ela dá e tira de acordo com seu dever. É ela também a única capaz de findar a existência de um de seus irmãos, sendo talvez o único ser do universo a ser verdadeiramente Perpétuo.
Pensando a respeito das influências míticas que a personagem tenha sofrido, é bastante necessário filtrar muitas dezenas de deuses da morte, já que quase todo panteão que se preze (mesmo os monoteístas) tem algum responsável pela função. O primeiro a vir na minha cabeça, naturalmente é Thanatos, irmão de Hipno (o Sono, que é quem cria o Morpheus grego), filhos de Nix (noite) e Érebo (escuridão).
Defronte, o filho de Jápeto sustem o Céu amplo
de pé, com a cabeça e infatigáveis braços
inabalável, onde Noite e Dia se aproximam
e saúdam-se cruzando o grande umbral
de bronze. Um desce dentro, outro vai
fora, nunca o palácio fecha a ambos,
mas sempre um deles está fora do palácio
e percorre a terra, o outro está dentro
e espera vir a sua hora de caminhar,
ele tem aos sobreterrâneos a luz multividente,
ela nos braços o Sono, irmão da Morte,
a Noite funesta oculta por nuvens cor de névoa.Aí os filhos da Noite sombria têm morada,
Sono e Morte, terríveis Deuses, nunca
o Sol fulgente olha-os com seus raios
ao subir ao céu nem ao descer o céu.
Um deles, tranqüilo e doce aos homens,
percorre a terra e o largo dorso do mar,
o outro, de coração de ferro e alma de bronze
não piedoso no peito, retém quem dos homens
agarra, odioso até aos Deuses imortais.HESÍODO. A Teogonia. Tradução de Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 2006
Obviamente, Thanatos aparece aqui como uma moral e personalidade praticamente oposta a personagem de Neil Gaiman, no entanto sua relação de oposição e atração com o irmão Hipnos (que é quem comanda o Sono e os sonhos no mundo grego, a partir de seus filhos/servos), muito nos faz lembrar dos dois irmãos em Sandman.
Outros dois exemplos marcantes são encontradas na tradição Judaica e Xintoísta. Na primeira, diferentemente do Midrash e dos textos rabínicos, existe uma tradição dentro da cabala, que afirma que o Anjo da Morte é tão belo, que quando o vemos, imediatamente nos apaixonamos por ele. E o amamos tão profundamente que nossas almas saltam dos nossos olhos em direção ao Anjo. Dentro do Xintoísmo temos a bela história de amor entre Izanagi e Izanami, bastante semelhante aquela de Orfeu e Eurídice. Izanami, morta no parto, vai para o mundo dos mortos (Yomi). Seu amante parte em sua busca, mas a encontra em uma forma monstruosa, com a carne podre e bichos vivendo na mesma. Com terror ele foge de volta ao mundo dos vivos, onde recebe a ameaça de sua amada que ela mataria mil pessoas por dia se ele realmente a deixasse, o que Izanagi fez, jurando criar 1500 pessoas a cada dia. A partir daí a deusa passa a atuar em diversos contos e histórias como a força por trás da Morte. No entanto, ela é um ser movido pelo amor, e muitas vezes apresenta compaixão em seu serviço. Izanami se tornou inclusive uma personagem importante na excelente HQ de Mike Carey, Lúcifer.
Para concluir o artigo, posso apenas dizer que Morte, foi realmente uma idéia excelente de Neil Gaiman. Ela se tornou tão grande que transcendeu a própria série. Existem pessoas que se vestem e possuem souvenires da personagem mesmo sem nunca ter lido uma linha da história. Em grande parte por causa do goticismo que surge nos anos 80, Morte, parece representar uma imagem ideal do estereótipo do gótico, que apenas reforça as qualidades do mesmo. Ela se tornou um espelho para toda uma tribo, quase uma propaganda. E para todos os fãs de Sandman ela é muito mais do que isso, ela é uma amiga, uma sábia, e uma verdadeira esperança de que quando se morrer seja possível ir com bom humor: “da próxima vez se lembre e pratique um pouco mais, pedal da esquerda vai mais rápido e o da direita para o carro”.