Já há um tempo que remediava escrever sobre a graphic novel O Incal. Não que queria deixá-la esquecida, relegada ao canto de minha estante, mas pela lembrança que Moébius traz a minha adolescência, em especial, por ter representado um divisor de águas. O monsieur Jean Henri Gaston Giraud foi responsável por muito do meu deslumbre e fanatismo por sci-fi e HQs. Para lembrar o francês foi o autor da arte de filmes marcantes como Alien, Duna, Tron, Willow, Mestres do Tempo, O Segredo do Abismo, O Quinto Elemento e mesmo O Império Contra-ataca (Star Wars V) além de influenciar tantos outros artistas, como Ridley Scott em Blade Runner, Hayao Miyazaki em Nausicae, Frank Miller em Ronin, P. Craig Russell, Frank Quitely e Charles Burns. O mestre faleceu este ano em março e algumas lembranças vieram à tona, como o quanto era difícil conseguir quadrinhos numa cidade do interior do Ceará, ainda mais se morasse em um distrito rural afastado, mas mesmo assim, através de alguns primos conseguia colher os bons frutos daquela época, a parábola do Surfista Prateado em parceria com o Stan Lee foi um deles. E O Incal como a obra máxima em quadrinhos em ficção cientifica espacial, ou melhor, space opera, foi um trabalho que só em Xerox li e mais de vinte anos depois conseguia os álbuns, precisava rever esses momentos na memória.
Recentemente a Devir publicou em um único volume os álbuns deste trabalho único, ilustrado por Moebius, mas escrito também por outro extraordinário autor, o franco-chileno Alejandro Jodorowsky, um dos autores mais enigmáticos e controversos da atualidade, por sua carreira eclética e pela prática que supostamente lhe permite curar as pessoas através da Psicomagia. Por sorte, sua veia criativa foi bem utilizada ao construir os mundos que podemos apreciar nesta coletânea.
Imprescindível seria a primeira palavra para classificar esta saga, publicada entre maio de 1981 a junho de 1989 em seis edições, narra as aventuras do investigador particular de classe “r”, John Difool, e sua jornada através da galáxia inteira, depois que recebeu de um moribundo berg o chamado Incal, um poderoso artefato. O Incal são objetos mágicos que controlam o equilíbrio do universo e outorga grande poder a quem é seu portador.
Ambientado num universo distópico, mais precisamente numa cidade-fosso de um império galáctico dominado pelos humanos, o detetive se envolve numa conspiração que o converte de repente no Messias e peça-chave de uma revolução universal. E assim inicia as aventuras do incompetente detetive, perseguido por todas as facções que buscam o Incal, sejam o governo, representado pelo (a) Imperadoratriz, um andrógino; a Igreja, com seus religiosos aristocratas, a Amok, uma facção terrorista; a raça dos Bergs, que competem com os humanos para dominar a galáxia e o Tecnopapa com seus asseclas, que busca eliminar toda a luz do cosmos. Personagens como Animah e Tanatah, com o Metabarão e seu filho, Solune e Wolfhead irão se reunir com ele para entreter o leitor nessa história de perseguição pela Galáxia.
Para ler a coletânea não é uma tarefa fácil, já que requer uma concentração e uma sensibilidade amplas, não só pela história e seus personagens e, sobretudo, o requisito imprescindível de compreender o argumento “louco” de Jodorowsky, pela criatividade e a grande variedade de ideias e o desenvolvimento delas, criticando em meio ao argumento intrisicamente a política, o poder e a sociedade consumista, ao mesmo tempo em que trilha a metafísica, o esoterismo, os clássicos da ficção científica, a literatura oriental e a mitologia universal.
Pelos personagens, as surpresas vêm de todos os lados. O protagonista é um cara cheio de defeitos, meio tonto, entregue aos prazeres carnais e até covarde, mas que assumirá em meio a guerra civil intergaláctica o papel de herói. Para citar outros destaco o seu mascote, Deepo, – uma espécie de ave falante – parece ser mais inteligente, valente e engenhoso que seu dono; O Metabarão, um mercenário de poderes ilimitados, que havia renunciado a vida de lutas, ganhou até uma série especial, pelo seu carisma; Solune, o filho do Metabarão, é uma presença silenciosa, mas importantíssima para o desenvolvimento da história; entre outros. Vale mencionar ainda que todos eles estão baseados nas cartas do Tarô e provavelmente suas personalidades tenham relação a essa lógica, por exemplo, Difool se baseia na carta do “O Louco” ou em bom inglês, The Fool, o número 0.
Em relação às ilustrações, Moebius a cargo do lápis e das tintas nos dá uma lição de arte. Os desenhos dos personagens, expressivos e efetivos são notáveis. Seus cenários são extraordinariamente geniais, ele entendeu perfeitamente as intenções de Jodorowsky e essa excentricidade narrativa é perfeita inserida ao gráfico. Bem certo, o francês seria o único que conseguiria chegar ao nível de perfeição para esta obra, o que demonstra em trabalhos posteriores que expandem o universo de O Incal, com outros ilustradores.
Não esquecemos as cores que constatam e detalham cada cena, o trabalho onde a Luz e a Sombra são protagonistas, Moebius e seus coloristas Yves Chaland, Isabelle Beaumeney-Joannet e Zoran Janjetov valorizam e o resultado é sem dúvida um triunfo artístico. Não é a toa que foram oito anos para completar a façanha deste universo distópico. A versão brasileira anterior, colorida digitalmente e com censura não prestigiou o trabalho desta equipe, e neste caprichado álbum as cores originais da obra são inseridas da forma que foram concebidas.
Recomendo a todos os leitores do Ambrosia, é uma dessas jóias que todo amante dos quadrinhos deve ter. Consigam e uma advertência para quem ainda não conhece, quem entra neste universo, submerge em uma outra dimensão e passa a viver nela e não há volta, estou deste então…
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