A poesia da poluição – a poluição da poesia em RISCO

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 por Pedro Cobiaco

“Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
(…)
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.”

Carlos Drummond, A Flor e a Náusea

 Quando se trata de contar uma história que aborda diversos protagonistas, com narrativas que acabam por se cruzar, os olhos do observador (personagem invisível e onipresente que vê tudo e nos revela a história) talvez sejam o detalhe mais importante. Em RISCO, de Marcelo D’Salete, a lógica desequilibrada do mundo urbano é exposta através dos olhos de um voyeur silencioso, um “cameraman” de gestos sutis e significativos, que por vezes toma uma aproximação invasiva e agressiva e por outras mantêm uma distância respeitosa e comovente dos personagens.

Se tratando de personagens, o mais importante deles nessa história (sem dúvidas o mais presente) talvez seja a cidade — tanto um inferno quanto o paraíso para aqueles que a habitam. Ao mesmo tempo em que as ruas parecem abrigar & incitar a sujeira e a violência desnecessária dos policiais e playboys de RISCO, por vezes a “câmera” se distância para nos mostrar a cidade como companheira fiel do protagonista, seja nos momentos de solidão ou de luz. É também a cidade que nos apresenta seus outdoors, sua poluição visual, que sob os closes certeiros de D’Salete (praticamente gritos de denúncia) abrem camadas no significado da história, mostrando os males que estão escondidos nas entrelinhas.

A dualidade se mantém como constante na obra: os traços longos e claros de D’salete dão vastidão às vielas e becos apertados da cidade quando o autor deseja, ao mesmo tempo em que suas pinceladas violentas de preto podem esquartejar o espaço, comprimindo sufoco em calçadas e muros e escondendo atos de violência nas sombras. Esse yin-yang encontra casa também nas consequências irônicas geradas pelos atos dos personagens: o egoísmo da fotógrafa, que com sua câmera em mãos torce pela morte de um inocente para poder brilhar na primeira página do jornal, acaba ditando o rumo da vida de Doca, menino que parece estar disposto a dar um passo na direção do abismo pra ver se o escuro é mesmo tão pior assim que essa realidade gasta e repetitiva — ou talvez ele seja só um garoto que fale demais mesmo.

Em RISCO, o jeito com o qual D’Salete guia a narrativa parece nos dar a impressão de que existe uma força maior movimentando tudo, uma força que está acima de qualquer desejo ou situação. Ele aproveita muito bem as possibilidades de uma história curta: sabe tirar vantagem de não poder se aprofundar demais em nenhum personagem, e com isso cria em alguns momentos uma sensação de que todos eles são apenas pequenas peças de um jogo, que por horas parece desgovernado mas que sempre dá um jeito de entrar no trilho e fazer sentido (a gente acaba percebendo que nunca deixou de fazer).

 

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Ao mesmo tempo em que a sujeira da cidade abate a atmosfera de grande parte da narrativa, há também uma sensação de calor e humanidade, que surge com força nos trechos em que o casal jovem aparece em cena e parece costurar todos os momentos de frieza da história e gerar algum tipo de compensação. É como se os dois adolescentes entendessem: a cidade, a vida, a noite e os homens podem ser realmente frios – mas nós sabemos que nós dois, ao menos quando estamos juntos, não somos. Como a flor que nasce no meio do asfalto de um bairro sangrento, a poética leve e luminosa desses momentos é o que mantém o leitor com esperança enquanto continua pela história, mesmo nos momentos de injustiça explícita. D’salete entende as regras do equilíbrio, e sua história é muito bem construída.

O traço do autor é também motivo de comentário: há algo de muito icônico e bonito no seu jeito de desenhar, e as expressões faciais acham maneira de ser naturais mesmo quando neutras. Além disso, Marcelo consegue fazer até mesmo o mais frívolo dos objetos soar lírico com sua linha dançante & tremulante, que encontra uma precisão rara entre o leve e o estruturado. A eficiência de D’Salete também se destaca, já que mesmo nos painéis mais sujos (uma sujeira que a história pede), a leitura nunca deixa de ser clara, gerando assim uma boa propulsão pra história. Em um ou outro quadro se tem a impressão de certo desleixo, mas em momento algum chega a ser algo que quebre o ritmo do quadrinho. Pelo contrário: RISCO tem um ritmo muito bonito, um tipo de mosaico de narrativas intercaladas de maneira natural e eficiente, que mostram que o autor sabe bem onde cortar e onde colar cada momento da história — a experiência do artesão.

Marcelo D’Salete alcança, com RISCO e seus tipos urbanos, uma beleza que não é fácil de atingir. Uma beleza que apanha, que foge, que sangra, que chora, que se esconde, mas que continua sempre confrontando, em busca de um recipiente pra preencher e se fazer física. É uma beleza calcada por cima do bizarro equilíbrio entre esperança & sofrimento — assim como a vida dos personagens que D’Salete retrata.

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RISCO tem 35 páginas e foi lançada pela editora Cachalote como parte da coleção Franca (série de publicações que conta também com quadrinhos de Pedro Franz e Matheus Acioli) em Outubro de 2014. A edição é simples e bonita, envolvida numa bela jaqueta que é preenchida por inteiro com um grande retrato da cidade — um conceito que faz todo o sentido. Sai por R$28.

É possível comprar a revista pelo site do autor, autografada (saiba mais clicando aqui ), ou então em uma dessas lojas: Monkix, Gibiteria, Itiban, Travessa e Comic House. É possível também comprar, além de ler um pequeno preview, pelo próprio site da Narval.

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