O mundo dos quadrinhos tem um sem-fim de possibilidade narrativas a seu alcance, em especial pela virtude de conjugar o visual e o literário, oferecendo construções interpretativas e simbólicas capazes de fazer distintas formas de empatias em seus leitores. Ao longo dos meus trinta e tantos anos, as HQs me apresentaram mundos fascinantes e memoráveis, me convidou a conhecer todo tipo de heróis, vilões e personagens e maravilhado com as mais diversas e surpreendentes aventuras e peripécias. E vez por outra faço uma revisitada em algum título marcante e, como quero fazer usualmente aqui no Ambrosia, apresento uma análise da graphic novel Blood: A tale do tandem artístico formado por J. M. Dematteis e Kent Williams.
Fruto do selo Epic Comics, fundado por Jim Shooter, Al Milgrom e Archie Goodwin, uma linha que a Marvel capitaneou para leitores mais adultos que traria Dreadstar de Jim Starlin ou Elektra: Assassin de Frank Miller e Bill Sienkienwicz. O selo seria antecessor da revolução que a DC Comics apresentaria em 1993 com Vertigo, onde muitas das obras publicadas originalmente na linha marvelita seriam reeditadas, inclusive Blood, uma história de sangue, que li na edição em quatro volumes pela Editora Abril na década de 80 e que ganharia uma reedição em volume único pela Panini em 1996.
O selo da Marvel demonstrou o quão foi importante os talentos britânicos que invadiram o mercado norte-americano, muito dos quais pela vontade de tentar mudar as regras do jogo. Era o momento de autores como J.M. Dematteis, um roteirista com uma sensibilidade muito particular e uma filosofia que se equilibra com dificuldade com o comic mainstream. Nos anos 1980 participara de títulos como Crazy, Weird War Tales e House of Strangers até chegar na Marvel Comics logo assumindo Os Defensores, Marvel Team-Up e Capitão América. Logo o cara traria em trabalhos mais pessoais sua identidade artística como em Moonshadows, um retrato psicológico da herança dostoievskiana, ou A última caçada de Kraven (1987), que recentemente ganhou uma reedição primorosa na coleção Salvat/Marvel.
A capacidade de modelar a personalidade dos personagens segundo a orientação da proposta de trabalho seria uma característica marcante em sua carreira. Um dom que levaria para as séries do Homem-Aranha e da Liga da Justiça nos anos 1990, ou Greenberg the Vampire, com Mark Bagder, ou ainda Brooklyn Dreams, sua epopeia autobiográfica, em colaboração Glenn Barr. Mas de todas elas, Blood: Uma história de sangue, possivelmente seja a proposta que mais rompeu com suas características de roteirista, a história experimental foi que levou Kent Williams, voltar do exílio, que se dedicava à arte e capas de livros. Williams, após a aproximação com Dematteis e John Jay Muth no trabalho Moonshadows, também da Epic, devolveu o interesse pelo gênero e levou a buscar Dematteis em seu novo projeto.
A tradução dos desejos dos dois em fazer uma graphic novel bem mais artística traduziu na criação de Blood: A tale, uma HQ relegada a lembrança de alguns poucos leitores, mas com um êxito incrível na época de sua publicação, esgotando repetidamente as tiragens de seus primeiros volumes que facilitou várias reimpressões.
Para Williams foi uma reabertura em sua carreira, que saltou das capas de livros e chegaria a trabalhos interessantes como Wolverine & Destrutor – Fusão com J.J. Muth, Walter Simonson e Louise Simonson,Tell me Darkcom Karl Edward Wagner e John Ney Nieber ou desenvolvendo, novamente em colaboração comJ.M. Dematteis, a ambiciosa proposta de Os Livros da Magia, mas que só sairia do papel com Neil Gaiman a frente da história. Se levarmos em conta que Dematteis teve influência na carreira de Gaiman com o relato nada complacente encontrado em Blood, tanto que podemos encontrar antecedentes nas maravilhosas e oníricas paisagens de Sandman.
A minissérie de quatro números se centra na simbólica vida de um homem encontrado em sua infância por duas mulheres, em una clara referência bíblica, flutuando nas águas de um rio, sendo este o começo de um relato através do qual veremos crescer e encontrar seu próprio lugar num mundo atipicamente fantástico e ameaçadoramente vampírico.
Em todo caso, a peculiaridade de Blood: A tale não se encontra propriamente nas transgressões seguida por sua história e ilustrações, mas sim na intenção de tentar transcendê-la. Longe dos convencionalismo, um “desaire artístico” composto por maravilhosas aquarelas e uma exposição conceitual de um roteiro abstrato e simbólico. A HQ parte de uma ideia que DeMatteis e Williams tiveram ao ensaiar como seria um trabalho hardcore que misturasse todo tipo de recursos literários, teatrais, poéticos e pictográficos.
E o que foi construído faz do sentido partir do caos, o visual se mescla com o psicológico, levando ao leitor a encontrar e rastrear sua própria interpretação do que experimenta, criando em última instancia uma curiosa e elíptica obra de arte, não por seus resultados, igualmente difíceis de classificar, mas pela pretensão de sobrepor ao simplismo técnico de uma narrativa linear. Por fim, posso dizer que J.M. DeMatteis e Kent Williams transitaram no caminho do graal criativo pretendido pelo francês Moebius desde os anos setenta e até os fins da década de 1980 na seminal revista Métal Hurlant (na versão norte-americana, a Heavy Metal, Williams tinha dado seus primeiros passos nos quadrinhos). Em Blood: A tale, o grafismo que o ilustrador aborda, desbordante em cada página, está em constante comunhão com diversas e múltiplas formas de representação pictórica. Um verdadeiro retábulo pretensiosa e confusa em narrativa gráfica, com uma capacidade interpretativa contraditoriamente hermética, onde podemos vislumbrar tanto uma apócrifa alegoria religiosa, quanto um estranho conto de fadas, ou ainda um sexualizado exercício prosaico e poeticamente metafórico ou mesmo um tratado apologista de independência do artista frente a industria. Em suma Blood: A tale não é uma obra para todos os públicos, tampouco uma proposta fácil de encarar, mas que obriga o lector a senti-la e compreendê-la, enfrentando-a de uma forma que finalmente, decidirá se gosta, odeia ou ambas.
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