Sandman #50: Ramadan

Alcorão
2 – Al Bacara
185. “O mês do Ramadan foi o mês em que foi revelado o Alcorão, orientação para a humanidade e vidência de orientação e Discernimento. Por conseguinte, quem de vós presenciar o novilúnio deste mês deverá jejuar; porém, quem se achar enfermo ou em viagem jejuará, depois, o mesmo número de dias. Deus vos deseja a comodidade e não a dificuldade, mas cumpri o número (de dias), e glorificai a Deus por ter-vos orientado, a fim de que (Lhe) agradeçais.”

sandman2Sandman nº 50, mais conhecido como Ramadan, é um dos textos de destaque da série de Morpheus. Quem lê o quadrinho pela primeira vez percebe sua beleza estética e textual, mas é parando para saborear suas minúcias que podemos ver que esta produção é ainda mais bela do que a princípio se pensava. Ainda sim, de qualquer forma que você a leia, a história se mostra um trabalho extremamente atraente, tanto o é que este foi o número mais vendido de Sandman, chegando a suas 250.000 cópias.

Dentro da produção deste texto temos um ocidental típico se prontificando a escrever um texto com uma temática árabe, deixando a cargo de outros ingleses o desenvolvimento estético. Mas Gaiman não se limita a apenas escrever, uma vez mais, ele é capaz de superar um desafio e, procurando mostrar uma cultura completamente diferente da sua, abre uma janela para um mundo de fantasias, mais especificamente uma janela que leva o leitor para o espaço dos islâmicos do século VIII.

Obviamente existem barreiras que Gaiman não teria como quebrar devido a sua origem cultural, mas o trabalho final é deveras impressionante e ele é capaz de compensar este impedimento através de tácticas interessantes. Vejamos a questão das linguagens:

Na cultura árabe, como em qualquer outra, temos duas formas de propagação de informações: a via oral e a escrita; cada uma com suas peculiaridades. Por incrível que pareça, Ramadan é capaz de conciliar estes dois tipos de linguagem. Em primeiro lugar temos a via escrita, porém seu lugar é silencioso e não pode ser observado com clareza no quadrinho, apesar de seus resquícios lá permanecerem. Tudo começou com a produção da história. Gaiman buscou trabalhar de forma a inserir a cultura árabe na estrutura mais íntima da história, evitando utilizar uma mera roupagem “exótica”, e para tal ele buscou uma solução interessante: escrever um conto. O que isto significa? Que ele optou por dar um nascimento diferente a este quadrinho, ao invés do jeito clássico, no qual, entre outras coisas, encontra-se a descrição de cada frame, ele procurou escrever um texto narrativo, fixando-se no estilo de escrita árabe, cheia de ritmo e poesia. Assim, este estilo típico do Oriente Médio, mesmo que de forma alterada, distorcida e parcial e mesmo que apenas em alguns aspectos, delineia a estrutura do texto em si.

A parte oral, por sua vez, encontra-se ao longo de todo o quadrinho, sendo inclusive ela a guia da história. É com a voz de Haroun que Morpheus e o leitor ficam a par da situação e da cidade,  e ele guia mudanças essenciais nas imagens do quadrinho, assim como uma mente imaginando o que ouve. Mas é no final do texto que esta cultura oral se faz mais marcante. Mesmo nos dias atuais, mesmo envolto em destruição e fome, a busca pela magia de histórias e de um passado se faz presente. Vemos aí como a cultura e identidade de um povo ainda encontram-se atreladas ao contar de histórias que atravessam gerações.

Ilustração do persa Sani Ol Molk (meados do séc. XIX)
Ilustração do persa Sani Ol Molk (meados do séc. XIX)

Além deste aspecto um tanto mais abstrato da relação conto/cultura árabe, encontramos outras referências mais diretas. Uma das mais marcantes é a presença de uma das mais, senão a, história árabe mais conhecida por nós: As Mil e Uma Noites. Temos uma jovem que busca, através de histórias, impedir que um sultão a mate. Aqui se mostra o poder de uma boa ficção, mas o grande desafio da jovem a impossibilidade de dar um desfecho a sua prosa, desafio ultrapassado por meio da inserção de histórias dentro de outras histórias dentro de outras histórias. Ramadan funciona (assim como a narração da Necrópole, no arco Fim dos Mundos) da mesma forma. Ao longo do conto vemos diversas histórias menores sendo contadas no decorrer do acontecimento principal, sempre contadas em balões secundários, mas isto por si só não seria um aspecto forte o suficiente para haver uma comparação do quadrinho com As Mil e Uma Noites. A semelhança é mais clara que isto: Gaiman insere diversas camadas de histórias, sendo possível notar claramente a presença de três finais distintos ao longo do texto. E Russell ajuda a endossar a sensação de término, inserindo painéis que vão além da narrativa, estruturando o posicionamento e forma das imagens e frames para tal. E esta impressão é tão marcante que, ao desenhar a página 31 (vejam abaixo) o artista sentiu a necessidade de colocar uma fala que incitasse o leitor a virar a folha, evitando assim que este feche prematuramente a revista e perca sua página final.

Primeiro final
Primeiro pseudo final
Segundo pseudo final
Segundo pseudo final
Final verdadeiro
Final verdadeiro

sandman3 Falemos agora um pouco sobre a arte de Ramadan. Temos trabalhando na produção desta obra três artistas fabulosos, Craig Russell (ilustrador), Lovern Kindzierski  (colorista) e Todd Klain (letrista). Para continuar este texto, retomo um aspecto apresentado anteriormente: Gaiman não escreveu um roteiro strictu sensu, enquanto ele compunha o conto que daria origem ao quadrinho, ligou para Russell e perguntou como este esperava que ele continuasse a história, e Russell pediu para que ele a mantivesse como conto, que ela seria uma adaptação; decisão nada inesperada de Russell, conhecido por sua ampla coleção de adaptações. E o resultado final foi algo deveras belo, pois  este foi capaz de associar seu traço extremamente característico e estilizado com diversas influências buscadas na cultura árabe (segundo o artista, suas maiores inspirações foram o livro Mirror of the Invisible World: Tales from the Nhamseh of Nizami e The King’s Book of the Kings: The Shah-Nameh of Shah Tahmasp).

paginaumQuanto a presença desta estética, diversos exemplos podem ser citados, pois todos os frames do quadrinho procuram passa-la, mas uma imagem em partucular me saltou aos olhos. Logo na primeira página Gaiman introduz sua história “Em Nome de Allah, o compassivo, o todo-piedoso, eu relato minha história. Pois não há outro Deus além de Allah, e Maomé é seu profeta.”. Acompanhando esta proclamação introdutória, Russell insere um painel ricamente ornamentado, em que ele se utiliza de padrões simétricos e geométricos de forma a criar um objeto ao mesmo tempo belo, delicado, mas também bastante complexo. Segundo o ilustrador, o painel “foi feito para ser geométrico e formalizado, ainda que lembre um sol à pino, para fazer com que ele pareça com o olho de Allah”.

Mas a riqueza da obra não pode ser atribuída meramente a Russell, Kindzierski, que já trabalha com o artista a mais de 17 anos, é uma figura central nesta produção. Por vezes tenho a impressão que o colorista das histórias em quadrinho é esquecido pelos fãs, o que se torna contraditório quando vejo tantas pessoas falando que uma das grandes vantagens do Absolute Sandman é a re-colorização. De qualquer forma, a cor é um ponto chave em Ramadan. Qualquer um que folheie sua edição pode ver quão presente são as cores fortes e o contraste. Kindzierski busca mostrar a mais bela de todas as cidades nos tons de pedras preciosas e multicoloridas, e assim o faz. O próprio Lorde dos Sonhos, apesar de manter seu preto clássico, possui o contraste com o branco em inúmeros detalhes e a força do roxo e do azul (vide a imagem no início do artigo). É uma das versões mais coloridas e fantásticas do Sonho.

Noite ricamente estrelada e colorida

Por fim, temos o trabalho de Klain, que trabalha maravilhosamente as letras de Ramadan. Ele teve de ceder aos caprichos de Russell para estruturar suas letras e isto ocasionou em preocupações não apenas com o formato destas, mas também com sua complexa distribuição no decorrer das cenas, pois Russell procura sempre estruturar seus quadrinhos de modo a acentuar o máximo possível a idéia  que deseja contar, não deixando os frames e as estruturas clássicas de HQs lhe limitar, o que provoca resultados diferentes, belos e complexos. Vejam os exemplos abaixo; no primeiro Haroun passa por caminhos estreitos, tortuosos e antigos, que apenas ele compreende e que guardam os maiores segredos de seu palácio. E a narração, como um papiro desenrolado ao vento, acompanha a trajetória do Sultão. No segundo, Klain enfrenta um desafio similar, mas seu objetivo é ajudar a traçar a passagem do tempo e do esquecimento. Junto com a imagem da destruição, o voar da areia e o olhar de Haroun (que fecha-se cada vez mais), a fala do sultão acompanha a desgraça de diversas cidades suntuosas, transportando esta fatalidade para a sua. Klain necessita criar aqui um movimento diferente, fazendo um desenho com suas letras, que desvanecem junto com a areia e com as memórias e belezas de mundos outrora magníficos. Este trabalho complicado necessitou bastante dedicação, tanto que Klain acabou recebendo um bônus da DC por seu trabalho, mas o resultado final ficou extraordinário. (Infelizmente as edições brasileiras não respeitaram este árduo trabalho, reinserindo as palavras de forma bem menos cuidadosa).

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Para mais informações sobre o trabalho de Klain na série Sandman, há um artigo muito interessante escrito por Felipe Velloso aqui no Ambrosia.

Fechando o artigo, deixo a imagem da belíssima capa de Ramadan, feita por Dave McKean.

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