The Unwritten Vol. 1: A visão turva que se interpõe entre o personagem e o ser humano

Considerado por muitos uma das melhores séries em quadrinhos que surgiram no ano passado, The Unwritten é um daqueles títulos dignos do selo Vertigo: Comercial e alternativo ao mesmo tempo. Com argumento do inglês Mike Carey (Lúcifer, Hellblazer) e arte de Peter Gross (Lúcifer, Os Livros da Magia), a série explora de uma forma interessante o fanatismo dos fãs diante da inaceptabilidade de que o personagem ou a trama adorada, na verdade, não existe realmente. Que o ator de um filme é um ator e não o personagem. Mike não chega a advogar à favor de tal distinção, mas deturpa tais conceitos derrubando a fronteira entre o real e o imaginário. Fazendo com que um personagem homônimo seja as duas coisas, nos seduzindo a ingressar em uma jornada metalingüística que provoca a reflexão sobre questões como a fama exacerbada das celebridades, e o quão real pode ser uma história de ficção.

Neste primeiro volume, intitulado “Tommy Taylor and the Bogus Identity”, que compreende os números de 1 a 5, lançado lá fora em um encadernado de 144 páginas, somos apresentados à Tom Taylor, filho de Wilson Taylor, um famoso escritor de livros infanto-juvenis sobre bruxos (sim, a referência à Harry Potter é clara e utilizada textualmente na obra, inclusive). As primeiras páginas da edição 1 ilustra uma convenção literária, onde descobrimos que Wilson Taylor desapareceu sob condições misteriosas e deixara Tom aparentemente desamparado. Sem herança alguma, Tom vive de aparições nestas convenções, dando autógrafos em troca de pequenas quantias em dinheiro, já que o personagem dos livros possui o seu nome, e seu pai sempre o apresentara à mídia como sendo o próprio personagem, acostumando uma legião de fãs a fundir o ilusório e o real.

Tom não gosta da uniformidade que compreende sua pessoa e o personagem quase homônimo dos livros de seu pai, declarando isso ao leitor diversas vezes, sempre colocando o fato como algo incômodo. Sua vida se complica de vez quando durante uma palestra, uma leitora atenta para fatos estranhos que concernem a infância de Tom, como a escassez de registros fotográficos e a declaração convincente de um casal dizendo que ele era, na verdade, filho deles, e que Wilson o adotara apenas para que o menino servisse de imagem para seu personagem. As acusações atingem principalmente o rapaz, que logo é declarado como sendo o responsável pelo desaparecimento do “pai”. Tom inicia uma corrida para provar que ele era quem ele sempre acreditou que fosse, e não um rapaz adotado envolto em uma espécie de conspiração publicitária; ao mesmo tempo em que encontra com pessoas que tentam convencê-lo de que ele é, na verdade, Tommy Taylor, o personagem dos livros de seu pai. E é então que a trama decola.

Quando dizem à Tom que ele é de fato o personagem imaginário Tommy Taylor, a estranheza na declaração tem o mesmo efeito para Tom e para o leitor. Naquele momento estamos mergulhados em um contexto crível arquitetado nas primeiras páginas da obra, nos dizendo que existe essa linha que divide o mundo real e o mundo fictício, mesmo que ela seja tênue. Ao longo das páginas que procede tal revelação, somos apresentados à uma atmosfera e à um novo contexto onde aquilo torna-se plausível, baseado em pistas deixadas por Wilson Taylor e ações de inimigos – cujos quais Tom nem sequer sabia que existiam -, que acaba por definir o destino profético e revelar o legado místico ligado ao rapaz.

Mike Carey experimenta aqui uma transmutação constante de diversos estilos literários, concebendo sua história em uma parábola que ilustra o paradoxo da vida das grandes celebridades, que abriga a coexistência da glória e da tortura. Começa com uma narração despreocupada com situações melodramáticas e revelações dignas dos infames tablóides americanos, e posteriormente descreve seu plot em um thriller envolvente precedido de uma narração com elementos de aventura e mistério. As mudanças são feitas de forma extremamente suave e competente, fazendo com que o próprio andamento do enredo peça por tal oscilação.

A arte de Peter Gross não poderia ser melhor. Gross trabalhou com Gaiman em Os Livros da Magia, e curiosamente sua arte ficou atrelada à este mundo mágico que serviu de inspiração à Harry Potter. Ironicamente ele agora se encontra envolvido em outra, inspirada por sua vez nos bastidores da saga do bruxo britânico. Os desenhos conseguem se adaptar à ambos os ambientes. Quando descreve as páginas dos livros, seu estilo se aproxima de uma pintura; com traços mais soltos e cores mais foscas – excelente trabalho da dupla de coloristas Chris Chuckry e Jeanne McGee. Já no mundo real utiliza de traços mais firmes e quadros simétricos, distinguindo de forma clara os mundos exibidos na obra.

Para quem é fã de quadrinhos alternativos e sabe a qualidade que o selo Vertigo traz, The Unwritten é uma excelente pedida. Infelizmente ainda não temos esta pérola em português, mas quem sabe um dia a Panini não a publica aqui? Enquanto isso, o jeito é importar. =/

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