Eu devo confessar que tenho como gênero preferido, dentro do RPG, jogos de interpretação ou de horror pessoal (coisas como Storytelling, Cthulhu e Nobilis), e que como vocês irão perceber (estou preparando algumas matérias com diversos jogos sensacionais que nunca saíram ou sairão por aqui) o sistema a seguir se encaixa bem.
Há cerca de dois anos atrás, a editora Pelgrane Press, desenvolveu um novo sistema de RPG, que seria batizado de Gumshoe. A idéia era criar jogos completamente focados para investigação de mistérios em clima noir, misturados a horror e paranóia. Bem parecido com a proposta da Chaosium, que detêm os direitos da obra de H.P. Lovecraft. O desenvolvimento da linha ficou nas mãos de Robin D Laws, que já havia trabalhado para a editora na adaptação dos livros de fantasia “The Dying Earth” em um RPG. O primeiro título a se utilizar do sistema Gumshoe foi “The Esoterrorists”, cenário onde se joga com investigadores que tentam deter uma grande conspiração perpetrada por um poderoso grupo de ocultistas dedicados a destruição da própria trama da realidade. Eles chamaram o produto de um exemplo de jogo de horror geo-político, e o mesmo caiu nas graças da crítica especializada abrindo espaço para “Fear Itself”, lançado no ano passado.
Como o título já anuncia: “O medo em si” é um jogo de temática pesada, destinada mais a crônicas de curta duração, pelo baixo grau de sobrevivência psicológica ou física dos personagens nela inseridos. Ainda que o livro dê bom exemplos de jogos mais extensivos, onde os jogadores descobrem as monstruosidades aos poucos, bem semelhante a Call of Cthulhu em todos os seus aspectos. Até mesmo entidades-malignas-alienígenas além-da-nossa-pequena-compreensão aparecem no livro como os grandes patronos do mundo.
Ainda sim, o jogo foi relativamente bem sucedido, e abriu mais espaço para o pequeno sistema Gumshoe. O próximo passo foi bastante surpreendente, em uma poderosa visão da capacidade do novo sistema, a Chaosium fez um acordo com a Pelgrane Press para produzirem em conjunto e o resultado saiu esse mês.
Trail of Cthulhu, é um jogo situado nos anos trinta no mundo desenvolvido por Lovecraft. Ele apresenta duas opções de gênero, uma mais focada no lado Pulp (arqueologia e ação nos lugares ermos da Terra) e outra mais clássica, o bom e velho terror intelectual cósmico cthulheano. As mecânicas, até onde pude ver são bem eficientes, e para aqueles que já possuíam o livro “Fear Itself”, não existem muitas diferenças, exceto é claro o cenário, que é simplesmente fantástico (nada melhor para uma noite de tédio como uma visita a Arkhan ou Innsmouth).
O livro contém um cenário introdutório, que foi relativamente criticado por alguns playtesters da web, principalmente diante da qualidade do resto. O autor, Kenneth Hite, se esforçou para fazer um trabalho melhor do que o jogo original da Chaosium e para muitos ele conseguiu.
Esclarecendo um pouco a respeito das mecânicas do Gumshoe, como havia previamente mencionado, existia uma preocupação com o lado investigativo do sistema. No Call of the Cthulhu original, a maioria das jogadas para achar pistas são resolvidas a partir de testes de spot (procurar) ou listen (ouvir), e muitas vezes um jogo de mistério pode travar devido ao azar (não há como prosseguir diante para a próxima pista sem encontrar a primeira). O sistema novo muda bastante isso, eliminando as jogadas de dado para estas funções e as substituindo por um pacote de habilidades especializadas (técnicas da ciência forense e daí por diante). Cada cena, possui um número de pistas que pode ser encontrado por aqueles investigadores que possuírem os recursos necessários, e o resto é roleplay, a interpretação dessas pistas em si.
Outra nova mecânica que chama atenção é a reformulação do famoso sistema de sanidade do Call of Cthulhu, que no antigo consistia de apenas um atributo que era reduzido na medida que ele se defrontava com os mythos (coisas relacionadas a mitologia maior do mundo de Lovecraft). Haviam dois tipos de reduções, aquelas temporárias, que duravam por pouco tempo e geravam efeitos como o medo ou a fuga de um personagem, e aquela permanente, que quando muito poderia ser curada em terapia entre jogos. O novo sistema tem dois atributos para isso, estabilidade e sanidade. O primeiro cobre choques a curto prazo, e pode ser recuperado entre os capítulos do jogo, além de ser extremamente suscetível a coisas mundanas, como o contato com um cadáver. Ao se defrontar com mythos a que de estabilidade pode ser tremenda e extremamente debilitante. Já a sanidade trabalha em um sentido de longa duração, sendo a representação de quanto estes mythos quebraram a mente do alvo, e esta não pode se regenerar, sendo uma via de mão única para a insanidade.
Outro ponto alto do livro, como já mencionado, são as duas opções de narrativas: pulp ou clássica. A opção pelo pulp, muito tradicional nos jogos normais de Call of Cthulhu, coloca muitas vezes coisas que podem ser enfrentadas pelos investigadores, munidos de escopetas e outras formas de proteção. Já a linha clássica, vai mas no gosto dos livros de H.P. mesmo, com muita fuga e terror, diante da impossibilidade se enfrentar um inimigo.
O autor faz mais alguns grandes acertos: a caracterização do mundo nos anos trinta, colocando questões pertinentes embora geralmente esquecidas por jogadores e narradores preguiçosos, como por exemplo, como um personagem deve se portar diante dos totalitarismos políticos em ascensão no mundo, e o que isso representa para o mesmo em uma esfera social, e outras indagações semelhantes que melhoram a ambientação. O segundo acerto é que enquanto na sexta edição (e nas anteriores também) do jogo da Chaosium, os monstros eram descritos não só com fichas, mas com pequenas descrições objetivas, a nova edição traz cada criatura com dezenas de pequenos textos mostrando interpretações plurais das mesmas e não inclui estatísticas, respeitando a interpretação do narrador desses mesmos trechos. Isso é válido também em relação a mitologia do mundo como um todo, bastante fiel a histórias originais de Lovecraft, com poucas ligações coerentes ou grandes tramas. Um jogo feito para personagens que visualizam o terror incompreensível.
Há cerca de dois dias atrás, em um fórum, o escritor divulgou para os afoitos, que ele já está escrevendo o primeiro suplemento, uma crônica que se iniciará em Londres. E tomara que venham muito mais. Poucas coisas nesse mundo rpgístico são mais poderosas do que as mesas perpetradas nesses últimos vinte e sete anos de Call of Cthulhu. Espero também que o sistema Gumshoe continue a produzir iniciativas como essa, vale lembrar que a editora promete para esse ano um jogo em um cenário futurista onde os jogadores interpretam investigadores do governo com poderes bizarros, o nome será “Mutant City Blues”
Wow! Que post foda!
Será que isso sai por aqui?
Já joguei Call of Cthulhu e gostei.
Bom saber que a iniciativa nesse estilo está crescendo e que novas coisas são apresentadas.
Adorei o artigo.
Bem… tenho certeza que não.
Obrigado pela visita
Ah uma informação extra, descobri que o tal Kenneth Hite escreve Mage the awakening tb…
Agora tenho que comprar essa joça!
Muito boa à resenha.
Estava muito curioso sobre o sistema da Gumshoe.
Abraços.
Muito bom não depender só dos dados, dá mais espaço para as interpretações.
Gostei da resenha!
Po e eu nem sou fã de Call fo Cthullhu ne ? rrs
Cara deve realmente ser bom demais !
Bom saber que existem outras iniciativas com a obra de Lovecraft!
muito boa sua resenha, parabens…