Este artigo, é uma visão crítica e opinativa sobre a já desgastada e antiga querela entre a antiga edição do World of Darkness e sua versão contemporânea, que já completou cinco anos. Na verdade, sendo franco ele é uma resposta (e por que não dizer que ele foi inspirado por) ao artigo do blog Factoria RPG, intitulado “Em defesa de Mago a Ascensão”. Ela vem de forma pertinente neste mês por que o livro básico em português deve ser lançado em breve e este tipo de discussão deve ganhar força aqui no Brasil, onde as pessoas parecem ainda são um pouco apegadas ao antigo Mundo das Trevas.
Tenho consciência que atualmente sou um dos grandes viciados brasileiros em Mago: o Despertar (Mage: The Awakening), que ainda que só jogue há três anos (dois deles em minha crônica atual e geralmente quinzenal), tive a chance de comprar e ler todos os livros da linha (alguns mais de uma vez), além de participar ativamente dos fóruns internacionais sobre o jogo (ainda que esse vício possa ser expandido ao WoD como um todo, onde possuo boa parte dos livros e até agora três linha completas)
Ainda gosto muito do antigo WoD e por mais que Vampiro seja o jogo que mais tenha jogado nele (narrando inclusive um live durante anos), Mago sempre me pareceu de muito longe a melhor linha. E guardo com carinho minha modesta coleção de seus suplementos. Então, eu sou bastante fã dos dois jogos, mas vejo que o Despertar claramente sofre do mesmo problema que julgo que muitos têm sobre a Ascensão, ele ainda é desconhecido mais a fundo.
Mago: a Ascensão é realmente excelente e surpreendente (ainda que originalmente tivesse sido criado sim, como uma continuação contemporânea ao Ars Magica), por que lida com temas complexos e subjetivos que até então nunca tinham aparecido em jogos de RPG. Ainda que seja importante ressaltar, em sua primeira edição ele era bem diferente do jogo que viemos a amar não tendo desenvolvido ainda regras claras e até mesmo conceitos como mágika e paradigma. Havia um foco grande dedicado a aleatoridade de ser um Mago, ao contrário do heroísmo da segunda edição e boa parte do conflito se dava intra-tradições em disputas por nodos e recursos mágicos, um livro que poucos chegaram a ler e que nunca teve tradução para o português. O Mago que discutimos aqui é aquele de 1995, ou seja da segunda edição, com paradigma, paradoxo e tecnocracia resvalando como temas centrais do livro, assim como uma certa luta heróica pela liberdade pessoal. Ele era mais cerebral do que seus irmãos do velho WoD e por que não muito superior a eles. Mas um dos grandes problemas do jogo, senão o maior era justamente pertencer ao velho WoD, coisa que seu antecessor medieval, o Ars Magica não precisou se preocupar.
Toda a metafísica do paradigma de Mago não fazia muito sentido de acordo com o resto do mundo. O Velho WoD era um jogo onde as outras linhas não foram baseadas em paradigmas, o que fazia com que Caim (e Deus, como Demon: the fallen mostra) existisse de forma inquestionável e à revelia das crenças humanas. Não importa se a tecnocracia estivesse muito mais forte e que 90% da humanidade hoje em dia não acreditasse no sobrenatural, isso não fazia a menor diferença para a existência de Vampiros, Lobisomens, demônios e etc… O que para mim era um completo quebra-clima para o mundo de Mago. Eu particularmente só jogava o antigo mago em um mundo particular onde tudo era sujeito a paradigma, senão a coisa não fazia sentido por que nunca houve uma boa explicação para isso na Ascensão.
O Segundo problema é certamente pertinente a todo o antigo WoD, que foi escrito com muito pouco cuidado em termos histórico-culturais, resultando no surgimento de estereótipos místicos assombrosos e ridículos que em nada se assemelhavam as tradições mágicas/místicas de nosso mundo, sendo sombras troncas das mesmas. Felizmente eles também inventaram muita coisa, e isso é muito importante, e a coisa em dado momento se tornou tão ficcional/caricata que voltou a ser interessante. A Tecnocracia abrangia conceitos físicos mal feitos e era completamente inconsistente historicamente, para citar um exemplo, temos a “Ordem da Razão” que me parece ter sido desenvolvida como um grande estereótipo leviano do que os autores aprenderam sobre a renascença italiana na escola.
Enfim, ainda que o jogo fosse bom… bom não, maravilhoso, ocorreu um sub aproveitamento de seus conceitos fantásticos e interessantes (como o paradigma e a versatilidade mágica) em um cenário que apesar de brilhante muitas vezes se prendia a rasos estereótipos sócio-culturais e históricos, aliado a incongruência de habitar um universo comum onde o paradigma não existia…
Eu toco nesse ponto por que ele me parece ser a principal crítica ao Mago: o Despertar, a sua tradição mística atlante apresentada como base, que é tão fictícia quanto todas as tradições e facções da Ascensão. E isso não é ruim para nenhum dos casos, só por que uma coisa não é uma cópia exata da realidade não faz dela pior, e ambos os jogos se distanciam igualmente da realidade cognoscível.
Em minha opinião, a melhor coisa escrita para a Ascensão, pelo menos em termos de cultura e história, foi o Dark Ages: Mage, já no final do antigo WoD, onde as tradições ficaram bem mais limitadas, o que era muito coerente com seus paradigmas pessoais. Mas agora deixemos de falar do antigo e nos foquemos na nova linha.
Mago: o Despertar é um livro estranho. Estranho por que apesar de excelente e gigantesco ele é de muito longe o pior dos livros básicos do “novo” Mundo das Trevas. Nas palavras de John Newman, um dos autores da linha:
“Eu acredito que mago transitou realmente bem de um jogo que possuía elementos que não eram apelativos para todos, para um jogo maior e com apelo maior. Livros como Banishers ajudaram Mago a se afastar de um paradigma atlante único. O livro básico de mago era um pouco seco, ainda que possuísse excelentes sistemas e idéias.”
Acredito que havia tanta coisa para se colocar em Mago, que acabou faltando espaço no básico, deixando conceitos e explicações fundamentais ao jogo a dois suplementos posteriores (o um pouco cansativo Sanctum & Sigil e o essencial Tome of Mysteries), que acrescentam e transformam muito o jogo.
No que concerne a paradigmas por exemplo, os livros nos mostram que a tradição atlante pode assumir a forma de praticamente qualquer tradição mitológica real e que ela realmente não possui o peso que o livro básico as vezes coloca sobre a mesma. As ordens, muito mais arquétipos de funções do que qualquer outra coisa, são bem menos restritivos filosoficamente do que as Tradições. Em Secrets of The Ruined Temple temos um amplo capítulo ilustrando do ponto de vista histórico, como o paradigma da atlântida (Mu, Jerusalém, etc..) pode se encaixar em qualquer mitologia terrena.
O capítulo III de Tome of Mysteries, trata diretamente da teórica ausência de paradigmas culturais no novo jogo. Os temas explorados são justamente as relações entre Mágica e Cultura, assim como os Mythos fundamentais que compõe os conceitos dos despertos. Várias perguntas essenciais são debatidas como a natureza da criação e a natureza do despertar. São oferecidas oportunidades de se construir a crônica a partir de idéias inteiramente novas, transformando as Ordens em sub-culturas paradigmáticas essenciais com diversas manifestações diferentes ao redor do mundo. Completando estas idéias temos um aprofundamento dos ditos “sinais de poder”: High speech, mudras, mana, runas e ferramentas, todos eles com novas opções de utilização de acordo com os novos Mythoi. O que nos mostra a possível (e por que não maior?) flexibilidade do novo mago, algo que em parte seria ainda mais expandido no livro: “Magical Traditions”, que trata exatamente de religiões e tradições místicas reais como opções de jogo.
Mesmo a mitologia default do jogo não precisa ser interpretada de forma tão literal como fazem os críticos. Em Mago: o Despertar jogamos com homens que dragam de metáforas a habilidade de manipular os conceitos subjacentes de todas as coisas. Os Reinos Supernos não são uma forma de patrono ou bateria. Eles não precisam nem ser locais literais da maneira em que compreendemos. Verdadeiramente eles representam a idéia de um conceito universal fundamental, em sua forma mais idealisada (Causalidade para Arcádia, Percepção para o Pandemonium, Transição para Stygia, Poder para o Aether e Vitalidade para Primal Wilds), em uma maneira que é tanto abstrata (nas Arcanas sutis) quanto literal (nas Arcanas “grosseiras”).
Dentro deste contexto, magos acreditam que todas as almas se originam do Superno, e que o Despertar não é nada além de uma lembrança da origem de suas almas, e o forjar de uma conexão entre sua identidade e o Reino para o qual você está mais sintonizado conceitualmente, com a alma como conduinte. Portanto, em um paradigma mais fundamental, magos tiram dos ideais platônicos (ou arquétipos universais) a capacidade de manipular o mundo a sua volta, ou em termo melhor, a própria realidade.
Portanto, me parece impossível, como Cochise Cézar diz de ver o Despertar, como um jogo “menor e mais pobre” que seu antecessor. Ainda que não esteja afirmando ainda, a cada dia estou mais inclinado a dizer que é até muito melhor, mas acho que isso só ocorre pelo meu acesso a todo o material publicado, já que se eu fosse comparar livros básicos, certamente ficaria com a Ascensão, mesmo que este primeiro tenha um sistema bem fraquinho (o storyteller era muito furado). O que nos leva a última (ufa!) parte da discussão, o sistema de magia.
Na Ascensão a única grande diferença é que ele era mais poderoso (você conseguia fazer efeitos mais fortes por menos bolinhas) e bastante flexível, deixando os seus limites inteiramente nas mãos do narrador. Era possível, dependendo da crônica soltar relâmpagos com níveis básicos de matéria, já que os mesmos são apenas moléculas ionizadas de oxigênio que se batem. No novo sistema as ainda que muito versátil (ou seja você ainda pode criar praticamente qualquer efeito que imaginar) ele possui bem mais coerência, inclusive dentro do cenário.
Ainda que seja bastante semelhante ao seu antecessor, ao invés de ser dividido pelas nove (agora dez) esferas, ele possui 13 práticas mágicas que perpassam do primeiro (com a primeira prática sendo perceber) ao quinto nível (as últimas são criar e “des-criar”). O sistema passou a ser mais coerente, e para aqueles que não gostam de desenvolver seus próprios efeitos foi dada muito mais relevância as rotinas, magias já prontas que podem aparecer em grimórios ou ser ensinadas uns aos outros. Mago: o Despertar é o maior livro já publicado pela White Wolf, e boa parte das páginas dele foram dedicadas ao sistema de magia, portanto seria impossível resumi-lo por aqui, mas a idéia é realmente essa.
Concluindo, acredito que munido de alguns de seus suplementos, ou mantendo em mente uma visão flexível do paradigma mágico apresentado no livro básico, Mago: o Despertar tem tudo e mais um pouco para ser o jogo mais complexo e por que não satisfatório cerebralmente do mercado. Ele é um digno sucessor do melhor jogo do antigo Mundo das Trevas, ainda que como este, não é desprovido de problemas. Ele certamente merece a aquisição, ainda que eu recomende pessoalmente que vocês busquem completar as suas coleções com Sanctum & Sigil e principalmente Tome of Mysteries.
Espero ter sido claro em minha exposição e se não fui, peço perdão e re-afirmo minha posição como fiel amante de ambos os jogos.
Tenham um bom jogo!