O O&O dessa semana abordará um aspecto um pouco mais prático do RPG: o design de jogos, e nesse artigo mais especificamente, a criação de um bom item/artefato para uma crônica. O primeiro ponto que se deve observar é justamente se existe alguma necessidade desse objeto e de que forma ele iria se encaixar melhor em sua história, assim como em que classificação o mesmo deveria entrar, já que são inúmeras as formas de se pensar esses objetos como elementos narrativos. Para pensar a inicialmente a respeito disso, dividi o artigo em alguns tópicos:
Objetos como complementos do cenário/personagem:
O tipo mais comum de objeto a ser encontrado pelas mesas, algo que concerne a quase tudo, de uma pistola a um balde de água. Esses itens não são raros e não costumam a ser tratados de forma relevante na maioria das histórias, ainda que possam fornecer soluções importantes para a trama. Não é necessária muita criatividade para se lidar com eles quando se é narrador, no entanto os jogadores devem ao máximo se aproveitar das vantagens que alguns objetos inesperados podem oferecer a cena. O uso pouco usual dos mesmos pode render momentos memoráveis ou infames (alguém lembra do balde de água que matou o Sub-Zero no filme do Mortal Kombat?), e esse tipo de abordagem oferece muito realismo a cena, principalmente se a mesma for situada em um local complexo como um ferro-velho onde muitas coisas podem ser úteis de forma inesperada
Exemplo: O revolver que falha na hora em que o herói seria executado e a pedra que é arremessada no botão de alarme são bons exemplos de itens mundanos tendo importancia na história. Posso citar uma mesa minha de Mago onde ocorreu um conflito em um ferro-velho e o antagonista ao invés de usar um ataque mais direto (como um bom usuário de Forças) optou por transformar a jaqueta de um personagem em um imã extremamente forte, resultando em diversos pequenos objetos pontudos e enferrujados voando para cima dele. Claro que aqui o foco foi o uso criativo da magia, mas isso ilustra o quanto o personagem estava atento ao ambiente em que estava, maximizando seus recursos.
Objetos como traço de caráter:
Esses aqui, que podem ser mundanos ou mágicos, se destacam pela aplicabilidade dos mesmos como um traço do caráter de um personagem. Um bom exemplo disso é a moeda do Duas Caras, o chicote do Dr. Jones, a garra do Wolverine ou o Ankh da Morte. Estes itens não precisam ser especiais ou poderosos (ainda que alguns sejam), mas devem se apresentar como uma marca do personagem, algo que valoriza sua personalidade. Eu me recordo inclusive de uma pertubação no antigo mundo das trevas que estava no livro do clã Malkavian, a fixação por objeto de poder. Me lembro de certa vez construir um cainita com isso, que só se tornava quem era enquanto estava com seu cetro/bengala na mão, sem ele, o mesmo não era nada, era outro personagem.
Exemplo: A pistola favorita de um matador, aquela que tem nome e que nunca errou um tiro com ele. A Máquina de Babbage de um gênio maluco vitoriano. O bicho de pelúcia favorito de uma criança. O raio de Zeus ou o Mjolnir de Thor, ainda que esses sejam mais armas que ilustram os personagens do que propriamente itens que reafirmam traços de caráter.
Desta categoria fazem parte aqueles objetos mais lembrados nas crônicas: uma espada mágica, uma pedra preciosa, um sabre de luz, um artefato atlante, uma engenhoca steampunk. Estes itens são quase sempre algo que se vale a pena lutar ou correr algum risco, e tantas outras vezes acabam se transformando em objetos fundamentais para os personagens. São os mais freqüentes objetos criados e desenvolvidos por narradores e jogadores e talvez por isso mereçam algum destaque. Vale dizer que os mesmos não precisam ter poderes ou dar bônus absurdos, as vezes tudo o que eles fazem é serem raros, como um metal precioso ou o único crânio de uma espécie extinta. É importante que o narrador mantenha a sobriedade quanto aos mesmos ao longo da crônica, em um mundo onde se tropeça em itens mágicos (como forgotten realms) eles claramente perdem o valor de existir.
Objetos como MacGuffins:
Um MacGuffin é um termo cunhado que significa o gancho de uma história, geralmente eles tem que ser objetos poderosos/importantes o suficiente para que os personagens acreditem que sua busca valha a pena, ainda que as vezes eles sejam coisas que sirvam apenas para dar movimento a história. O melhor exemplo de um MacGuffin são os itens que o Indiana Jones busca em seus filmes (a arca da aliança, as pedras de sankhara, o Graal, a caveira de cristal), ainda que a história seja realmente sobre outras coisas (a relação entre pai e filho, crença e dúvida na “ultima cruzada”) o Macguffin é o elo que faz a história se desenrolar. Acredito que muitas boas crônicas podem ser construídas em cima desse conceito, desde que o objeto escolhido seja sintonizado e poderoso (em um sentido narrativo) o suficiente com as ânsias do personagem. Claro que o caminho a ser traçado até o objeto é que é o mais relevante, mas o mesmo tem que despertar o lúdico dentro de nós, ser algo que sonhamos em possuir (até em um sentido de auto-preservação se for a cura para um vírus que está matando o planeta).
Exemplo: Um artefato alienígena esquecido que pode mudar os rumos de uma grande guerra, um pequeno trenó que se brincava quando se era criança e trazia a lembrança de tempos mais amenos (piada, aquilo lá não era exatamente um Macguffin, mas a referência a Rosebud é essencial).
A construção de objetos para uma crônica:
Quando queremos criar um objeto devemos pensar em uma única coisa: ele irá acrescentar algo a minha crônica/personagem? Se a resposta for sim o esforço será bem vindo. Quando queremos desenvolver bons objetos para os personagens uma das coisas mais legais é mostrar que ele tem uma história maior, mesmo que ele não seja necessariamente um objeto poderoso. Por exemplo, em uma crônica minha, um dos jogadores veio a possuir uma arma mágica que eu batizei de “o fio de nix” (deusa Noite helênica). Primeiramente uma coisa interessante a se pensar é que essa mesma adaga chegou ao mundo em uma outra mesa minha anterior (que era situada no século XIV), ainda que a mesma não tenha tido continuidade eu costumo a me citar (coisa de megalomaníaco) com certa frequencia, principalmente quando acredito que minha criação foi particularmente bem desenvolvida, portanto, o mesmo objeto que dei para o jogador X em um jogo, foi parar nas mãos do jogador Y em outro jogo que é parceiro de X, este nos dias de hoje (isso só funciona é claro com ambientações similares ou iguais, nesse caso, mais uma vez, jogávamos Mage: the awakening). Quando ele chegou ao item e começou a descobrir sua história, pequenos fragmentos da velha mesa foram levantados, o que foi algo extremamente estimulante não só para Y, que ganhava um item com uma história muito bem desenvolvida, quanto para X, que teve seu velho personagem influenciando os rumos da trama atual. O mais legal de se fazer é resguardar informações, o jogador nunca deve saber tudo, ou todo o seu conhecimento deve ter sempre incoerências e brechas, pois lhe permite construir e adicionar elementos ao personagem quando se revela aos poucos novas coisas sobre determinado objeto. Na mesma crônica citada, em certa ocasião os jogadores visitaram a casa de um poderoso ser que resguardava muitos objetos sobrenaturais e suas histórias, e em um dos salões podia se observar uma tela renascentista gigantesca onde o velho personagem de X segurava o Fio de Nix em uma batalha épica. Um novo momento de exaltação e surpresa para esses dois jogadores, reforçando o senso de história e densidade da adaga.
Partindo dessa premissa, acredito que as vezes pode ser interessantes criar não só uma, mas diversas histórias para o mesmo objeto. E claro, espalha-las ao longo de sua crônica, para fazê-lo ao mesmo tempo uma ferramenta narrativística sutil, mas poderosa quando vista em conjunto.
Para terminar o artigo irei mostrar um item criado por mim, que acredito possa ser traduzido para todo tipo de sistema. Ele pode servir como Macguffin de uma crônica ou simplesmente ser uma poderosa recompensa dada a determinado jogador.
O anel lunargentum / Celebnîn (lágrima de prata em Sindarin) / como quer que você queira chama-lo
Este objeto mágico tem a aparência de um pequeno anel prateado, de coloração levemente azulada. Ele é liso e suave ao toque, mas parece extremamente extenuante tentar quebra-lo. O mais intrigante sobre o mesmo são as diversas lendas diferentes que fazem alusão ao mesmo e a incapacidade dos jogadores de utilizar seus poderes. Quando necessário em momentos de grande apelo narrativo o anel se ativará por conta própria e pode revelar efeitos que o narrador deseja aplicar, ainda que em minha concepção o mesmo sempre demonstre efeitos ligados ao tempo ou ao destino (um anel de lunargentum para amantes de Mage, mas efeitos como o Time Stop do D&D ou divinations poderosas também funcionam bem).
Narrativas sobre o objeto
A chave aqui é manter uma coerência temática, e ao mesmo tempo abrir um leque para várias possibilidades, todos sendo capazes de ser essencialmente verdadeiras em algum ponto. Predominantemente as histórias aqui foram baseadas em coisas do nosso mundo, mas fiz um pequeno adendo para aqueles interessados em converte-lo para um cenário de fantasia medieval.
O Anel de Nimue – As primeiras atribuições sobre este anel apareceram nas ilhas britânicas por volta dos séculos IV a VI d.C., sendo comumente associada a figura de Nimue. Poucas coisas foram escritas sobre ele, já que o mesmo derivava de uma cultura com tradição estritamente oral, ainda que existam possíveis referências ao mesmo em compilações das mais tardias ocupações romano-britânicas. Dizem que seus poderes incluíam a incrível capacidade de forjar destinos, mas que eram acompanhados pela maldição da loucura. Nimue teria padecido deste mal e forjado o maléfico destino que recaiu sobre a britânia conquistada, resultando diretamente na morte de Merlin.
O círculo de Trajano – O poderoso imperador romano Trajano teria sido um famoso portador deste anel. Pouco se sabe sobre a origem do mesmo ou como ele veio até as mãos do líder de Roma, mas diversos rumores existem. Alguns dizem que a prata do círculo havia sido feito por um sacerdote de Diana, que o abençoou com a acuidade em todas as caçadas, o mundo parecia paralisar quando uma lança do portador era disparada. Dizem que o imperador teria ganho de presente o anel através da conquista do sétima degrau do culto de Mithras, mas outros dizem que o mesmo chegou como um tributo do culto de Isís, em particular de uma grande sacerdotisa que mantinha relações com o mesmo. Dizem que o anel era apenas um dos muitos objetos de poder guarnecidos pelo imperador.
O espólio de Cronos – Este anel seria um dos espólios deixados por Crono no fim da titanomáquia (batalha narrada por Hesíodo em sua Teogonia), se igualando em poder aos demais objetos (o raio de Zeus, o capacete de Hades e o Tridente de Poseidon). No entanto este tesouro havia sido escondido dos olímpicos e trazido a terra por um fiel servo do titã. Durante muitos séculos o tesouro repousou em uma caverna trácia, onde um grupo de órficos celebrava seus ritos dedicados ao tempo como Aeon eterno (o dragão das rapsódias), até os conquistadores romanos levarem o anel para o templo de Saturno no monte capitolino da cidade eterna. Quando o cristianismo entrou em ascensão, um dos mestres dos augúrios teria fugido com o espólio para o norte, ainda que ninguém saiba para onde.
O anel de Saulo – Saulo era um fariseu do ano III extremamente dedicado a lei da Torá, viu com desgosto a total e completa destruição de sua fé com a ascensão das palavras de Cristo. Aos poucos se tornou um rabi experiente, que crescia todos os dias em conhecimento de sua crença, até ser encarregado de uma das jóias da casa de Davi, há muito escondidas com a destruição do templo de Jerusalém. Certa noite Saulo teve uma visão de Cristo e foi levado ao questionamento de sua fé. Ele fugiu com o tesouro de Davi, indo parar em Roma, onde o mesmo foi fundamental para ascensão do Cristianismo.
O legado de São Jorge – Quase não existem referências a este objeto que o ligam diretamente ao santo, no entanto, o anel foi utilizado por Eduardo III da Inglaterra ao longo da Guerra dos Cem anos. Não apenas sendo o símbolo de fundação da ordem em 1348, como ostentado na vitória da épica batalha de Agincourt. Alguns diziam que o anel era um espólio do Dragão derrotado pelo santo, embora as más línguas afirmassem que o mesmo era na verdade um tesouro de Sigfried, o verdadeiro matador de um dragão, e portanto uma chaga pagã.
Celebnîn – A lágrima de prata não se chamou sempre assim. Há muitas eras quando o poderoso Rei Élfico Aran Maethor enfrentou seu irmão Mellaroch pelos reinos de Rannor e Narbeleth. Originalmente chamada simplesmente de Celebsigil (adaga de prata, ainda que seja um anel) o objeto havia sido fundamental tanto na ascensão do ambicioso Mallon (futuro Aran) como responsável por toda destruição que a mesma arrebatou. Milhares de membros do belo povo perderam sua vida nas guerras iniciadas por Aran em seu palácio de Cristal, até a chegada das forças de seu Irmão, Mellaroch, que finalmente restaurou uma sombria paz entre os elfos. Uma vez de posse do anel, o jovem rei se martirizou sendo trancado junto com o mesmo nas profundezas da terra, para que a agora lágrima de prata nunca mais visse a luz do dia e fosse esquecida por seus pares, incapaz de despertar mais uma vez a ambição de um destino grandioso.
Pronto, sei que o artigo foi longo e que nem todas as histórias são coerentes entre si, mas vocês devem entender que elas não precisam ser. É possível que um jogador investigando sobre o objeto descubra mais de uma dessas histórias e a dúvida será um elemento instigante para a aceitação do mesmo.
Muito bom o artigo! Não tinha ainda caido minha ficha sobre esse poder narrativo.
Apesar da aventura de buscar item x ser classica, essa visão que tu demonstrou de ser uma ligação não só mais uma missão me é nova como dita diretamente, mas agora Senhor dos Aneis usa a mesma, portanto só não tinha percebido.
Muito bem escrito!
E muito bom também não ter abordado só objetos de poder, mas os comuns, aqueles que estão mais tempo presentes para dar mais oportunidades.
Ainda faço um Pj ou PNJ com um objeto puramente narrativo!
Gostei muito do artigo. Lembrei particularmente da minha boneca. Esqueci de ver se ela ainda está viva…. Tenho que procurar saber isso..
huhhuehue muito legal essa visão que você deu aos objetos em cena. As lendas colocadas por trás do anel foram ótimas. Prabens Felipe !
Genial!
Conseguiu separar bem as possibilidades Felipe. Citou até objetos mundanos que para mim tem até mais importancia. Acho chato que muitos que jogam rpg não reparam nem se preocupam com o que ha em volta no ambiente aonde transcorre uma história.
Fato que em alguns ha quase que um efeito macgyver e tudo pode ser util… Mas não vejo nada de tão errado com isso…
bem, acho legal essa de explorar o cenário que está lhe sendo narrado, isso sofre influencia direta do que já disse antes em outro O&O sobre testes de percepção.
Nunca tive de lidar com jogador mcgyver não, mas acho que conseguiria lidar com isso sem problemas….
Nem digo que seja um problema. Mas é engraçado.
Velloso (hehehe),
Gostei! Nunca tinha pensado nos objetos de tal maneira.
Sem dúvida agora os vejo de forma diferente.
Legal a matéria… os objetos podem ser uma ótima forma de concretizar aspectos mais subjetivos, como traços de carater ou até mesmo eternizar momentos.
Eu mesmo joguei com um bardo por muitos anos, que havia discutido com um membro do grupo e levou uma flechada no bandolim. Continuou com a flecha lá, e mais pra frente, quando ficou bem conhecido, “lançou moda” com a flecha no bandolim!
Também é legal ver como animais também podem levar estes mesmos conceitos apresentados.
Um abraço! Keep posting!
é redundante, mas… ARTIGO MUITO BOM! especialmente na parte dos itens comuns e a interação com os cenários
Muito bom o artigo…
Você poderia me dizer aonde você comprou a moeda de duas faces iguais?
Você venderia ela por quanto e você vende ela?
Me responda por favor