Para os jogadores que ainda não conhecem, Ravenloft é um cenário de D&D inspirado em histórias de horror gótico, como Drácula e Frankenstein. Originalmente como uma aventura isolada para Ad&d 1e chamada I6:Ravenloft, ela teve uma recepção tão positiva que logo ganhou uma continuação e inspirou a criação do cenário.
O que tornou Ravenloft diferente dos outros cenários, foi a tentativa de incluir temas clássicos do horror gótico no D&D. O horror, a corrupção, paixões obsessivas, anti-heróis e vilões carismáticos são alguns dos elementos que a ambientação tentava trazer para um ambiente de fantasia medieval. Diversos personagens do cenário acabaram por se tornar figuras conhecidas dentro da mitologia do D&D, como o Conde Strahd von Zarovich, o caçador de monstros Rudolph van Richten e o rei-mago Azalin Rex.
Com o fim do Ad&d 2e e o lançamento do D&D 3e, a linha passou para a Arthaus Game, subsidiária da White Wolf que obteve a licença do cenário. Essa foi uma época de várias mudanças na ambientação e uma série de livros de qualidade errática.
Já com o lançamento do D&D 4e, a licença retornou a WotC, que manteve o suporte ao cenário através de algumas poucas matérias nas suas revistas virtuais. Elas traziam para o cenário-base do jogo elementos tradicionais de Ravenloft, como os ciganos vistani ou os domínios, territórios controlados por criaturas malignas poderosas. O último produto oficial a ser lançado relacionado ao cenário foi Castle Ravenloft, um jogo de tabuleiro inspirado na aventura que deu origem a ambientação e cujas regras são uma simplificação de D&D 4e. Havia a promessa de um novo livro do cenário, com seu próprio sistema de regras (baseados na 4e) e que seria lançado em 2011. Entretanto, esse livro foi cancelado no começo do ano, junto com uma série de outros livros.
Durante o lapso de tempo entre a 3e e 4e, com o suporte fraco recebido e a falta de um novo livro de cenário que convertesse as mecânicas do mundo para uma nova edição, muitos fãs começaram a trabalhar em suas próprias versões de um Ravenloft 4e.
Sendo fã do cenário e com o cancelamento do Ravenloft 4e, eu resolvi tentar isso novamente, agora utilizando de alguns elementos de jogos que conheci nos últimos anos. O que se segue são regras desenvolvidas para representar dois elementos importantes de histórias em Ravenloft, o medo e a loucura. É importante relembrar que essas são regras caseiras, criadas com base em gosto pessoal e experiências com campanhas anteriores. Então, as regras abaixo podem não agradar a jogadores com personalidades e expectativas diferentes.
Medo e Insanidade
Ao desenvolver essas mecânicas, o primeiro passo foi definir o que desejava alcançar com as regras para medo e insanidade. Em versões oficiais do cenário, o sistema usava de uma série de mecânicas para mensurar a capacidade de resistir ao stress mental sofrido em certas cenas. Isso era feito com algum tipo de teste de resistência (jogada de d20 contra uma certa dificuldade). Esses testes eram modificados por fatores como dados de vida da criatura que provoca o stress (como ser atacado de surpresa por um lobisomem), tendência do personagem e elementos situacionais (espaço em que ocorre a cena, possuir um item mágico que o protege da ameaça, etc.). Falhas geravam efeitos negativos, que eram descritos em listas com efeitos específicos para cada problema adquirido.
Demonstrando isso com um exemplo simplificado retirado do Ad&d 2e, seria algo assim:
O Mestre julga que o personagem-jogador deve fazer um teste de resistência contra horror (uma das várias classificações que os efeitos de medo e insanidade recebiam no Ad&d 2e). Isso é feito através de um teste de resistência contra paralização. É verificado se sua Sabedoria concede algum bônus no teste, além de alguns fatores descritos numa tabela (como a presença de familiares na cena). O teste é rolado. Em caso de falha, o personagem fica parado por uma rodada, sem se mover ou atacar. Então um dado é lançado em outra tabela, para verificar qual a consequência da falha. Essa consequência possui uma descrição de cinco a vinte linhas, com mecânicas relacionadas.
Supondo que a consequência sorteada seja “estado de choque”, ele se manteria parado por mais três rodadas, quando então faria um outro teste de resistência vs paralização. Esse teste seria repetido por até três vezes. Em caso de sucesso em qualquer dessas vezes, o personagem retorna ao normal. Em caso de três falhas seguidas, ele entra num estado de choque profundo, onde os testes passam a ser feitos de hora em hora.
Esse modelo de mecânica, apesar do esforço em dar alguma representação crível para o estado de desequilíbrio provocado pelo stress mental, é algo que prefiro evitar. Pois mesmo que a cena descrita que provocou o teste tivesse prendido a atenção dos jogadores, a necessidade de interromper a sessão para ler as regras a cada vez que um personagem-jogador adquiria uma nova condição negativa (como o estado de choque acima), acabava por gerar uma quebra de ritmo no jogo. Isso era ainda pior quando o grupo todo falhava no teste, pois provocava uma interrupção longa à medida que todos tinham que aprender rapidamente algumas novas mecânicas (pois muitos desses efeitos se tornavam recorrentes no personagem). O modelo utilizado na 3e não era muito diferente, usando de tabelas e modificadores específicos que acabavam por exigir consulta ao livro ou escudo do Mestre para serem usados corretamente.
O que eu queria alcançar quando comecei a pensar nisso, foi tentar desenvolver um modelo que não exigisse tantas rolagens, consultas e, principalmente, evitasse quebra de ritmo durante o jogo.
Ainda analisando minhas expectativas, preferi fazer uma mecânica que incentive, em vez de impor, a interpretação dos problemas adquiridos pelos personagens.
E ainda na questão dos personagens, vejo D&D como um jogo sobre heróis. Eles podem ter problemas, sentir medo ou perderem o controle, mas existe a expectativa de que eles sejam capazes de superar as dificuldades e triunfar. Mesmo que em cenários como Ravenloft, essa vitória seja muitas vezes vazia ou a um custo muito alto.
Isso acabou me levando a um modelo de palavras e frases, similar ao utilizado em FATE. Durante a criação de personagem, cada jogador escreve de uma a três frases curtas, que vou chamar de peculiaridades. Essas peculiaridades seriam problemas, medos, fobias e distúrbios psicológicos que o personagem desenvolveu antes do começo do jogo. Como “Medo de aranhas”, “Não confiar em elfos”, “Cleptomania” e “Pesadelos frequentes”.
Essas frases devem ser coisas que podem gerar ganchos interessantes durante o jogo. Durante a sessão, quando o jogador considerar que seria interessante para a história, ele pode acionar uma dessas pecualiridades. Nessas situações, elas servem para demonstrar as excentricidades e falhas adquiridas pelos personagens ao longo do tempo.
Um exemplo é o anão que tem medo grandes espaços abertos. Sua fobia faz com que durante uma das viagens do grupo, ele insista que eles procurem abrigo numa mansão abandonada. O que, se tratando de Ravenloft, garante que a noite não será tranquila. A proposta é que o jogador tenha controle sobre esses momentos e ofereça sugestões de como a manifestação de suas peculiaridades pode tornar a aventura mais interessante, incluindo novos ganchos e problemas a serem enfrentados.
O jogador também pode escolher ir além de pequenas excentricidades e interpretar uma insanidade temporária relacionada a uma peculiaridade. Nessas situações, o descontrole temporário serve para incentivar a prática de atitudes típicas de histórias de horror.
Em um encontro não-combativo, o medo que um personagem sente de aranhas pode fazer com que ele se assuste e se separe do grupo. Ou sua cobiça pode fazer com que ele se coloque em situações de risco por algumas moedas a mais. Ou ainda, seu excesso de confiança o faz explorar a mansão abandonada, no aniversário da morte de seu antigo dono, mesmo com todos os alertas dos camponeses.
Já em um encontro combativo, considerando a dependência entre as classes e a expectativa do trabalho em grupo característico dos combates da 4e, ele toma algum curso de ação que provoque uma diminuição de seus recursos e eficiência no encontro. Talvez ele gaste poderes diários atacando uma alucinação. Ou gaste poções de cura para se curar de ferimentos que não recebeu. O guerreiro pode se recusar a marcar uma certa criatura da qual tenha fobia. Ou o warlock do grupo se recusa a amaldiçoar um adversário porque acredita que ele é um servo de seu patrono.
Se ao acionar uma peculiaridade, o jogador tornou a história mais interessante, seja adicionando novos ganchos, tornando a cena mais interessante ou criando um novo problema a ser enfrentado, ele ganha um marcador no final do encontro. Se ele fez seu personagem manifestar uma insanidade temporária, dois marcadores ao final do encontro.
O marcador pode ser qualquer coisa fácil de acompanhar. Como tenho muitos marcadores de vidro da época que jogava cardgames, devo usar deles, mas a anotação na ficha é o jeito mais simples. A desvantagem dura até o final do encontro em questão ou até o Mestre determinar que o gatilho que disparou a peculiaridade não se encontra mais na cena.
Marcadores podem ser gastos para dar alguma vantagem para o personagem. Minha lista atual de vantagens é esta:
a) Conseguir uma pista nova quanto ao problema/mistério da sessão. Como minhas sessões de Ravenloft possuem bastante investigação, a possibilidade de ganhar pistas extras é algo interessante para os jogadores;
b) Definir uma informação sobre o cenário. Se o grupo precisa de um lugar para ficar, um dos jogadores pode dizer “Tenho um tio na cidade que pode nos dar abrigo.” Ou se eles estão sendo atacados num templo por um grupo de lobisomens, um jogador poderia dizer “O símbolo sagrado no altar é feito de prata”. O Mestre pode vetar informações que inviabilizem ou prejudiquem a aventura;
c) Cancelar falhas em desafios de perícia;
d) Anular uma falha num teste de resistência contra a morte.
Outras vantagens podem ser adicionadas de acordo com o interesse do grupo. Para pessoas que querem combates mais rápidos, a possibilidade de utilizar os marcadores como pontos de ação (e aumentar o limite de pontos que podem ser usados por combate) é uma forma de acelerar esses encontros. Para os jogadores que querem um grau de letalidade maior no cenário, uma redução de pulsos de cura totais e a possibilidade de utilizar marcadores como pulsos extras poderia ser interessante. Ainda outras opções seriam a possibilidade de recarregar poderes gastos ou conceder o uso temporário de talentos não possuídos.
Outra opção que estou considerando, é possibilitar o gasto de pulsos de cura em momentos de stress como forma de adquirir novas peculiaridades. Por exemplo, um personagem que seja quase morto por um lobisomem poderia gastar um pulso de cura para adquirir a peculiaridade ‘medo de lobos’ após o final do encontro. Esse pulso de cura é recuperado normalmente com descanso.
Mas… o jogador controla a loucura do personagem?!
Sim. O Mestre ainda pode controlar definindo quando a situação é suficientemente interessante para a história, assim definindo quando e quantos marcadores o jogador irá receber. Igualmente possível é que o Mestre faça sugestões de quando certas pecualiridades poderiam ser acionadas.
Entretanto, a escolha de quando a peculiaridade é acionada é uma decisão do jogador, e isso vem de sistemas como Leverage RPG. Em jogos assim, é esperado que além de incentivar o jogador a interpretar as desvantagens de seu personagem, isso permita que eles tenham mais liberdade sobre como fazer isso. Em vez de uma lista de condições adversas que tentam simular diferentes distúrbios, o jogador tem a opção de desenvolver e personalizar as condições adquiridas pelo seu personagem, de acordo com a forma que deseja representar essas peculiaridades.
Além disso, esse modelo é uma mecânica simples de acompanhar. Ao pemitir que o jogador controle a manifestação de seus problemas, ele retira essa tarefa das costas do Mestre. E o abandono das várias tabelas, modificadores e listas de problemas psicológicos desenvolvidos, permite manter um ritmo de jogo contínuo, sem necessidade de consultas as regras.
Loucura Permanente
Essas regras, entretanto, não preenchem um fator importante das histórias de horror gótico. A possibilidade da insanidade permanente. Nesses casos, já decidi utilizar da mecânica de 0 pvs alternativos que mostrei no artigo O que significa ‘zero pvs’ (link).
Para as pessoas que não desejam ler aquele artigo, um resumo de como foi usada originalmente: O adversário chegou a zero pontos de vida, o jogador (com aprovação do Mestre) descreve o que acontece com o vilão.
No caso de insanidade permanente, basta alterar um pouco essa regra alternativa. Quando o personagem chega a zero pontos de vida ele pode escolher desistir dos testes de resistência à morte e em vez disso, enlouquecer seu personagem. Efetivamente ele se torna um NPC incapaz de ajudar o grupo ou continuar a se aventurar. O resultado final é que o personagem é ‘aposentado’, deixando de ser um personagem viável para o jogador.
Assim como existem formas de ressuscitar um personagem morto, devem existir maneiras de recuperar a insanidade de um personagem louco. E isso exige um esforço igual em custos e tempo, a trazer um personagem de volta à vida. Uma forma simples de lidar com isso seria criar um ritual similar a Raise Dead, com o mesmo gasto em recursos e realização de testes, alterando somente o nome para algo mais adequado (“Recuperar Sanidade” sendo o mais óbvio).
Numa campanha onde trazer os mortos de volta à vida é algo raro, entretanto, um ritual de recuperar sanidade deveria ser igualmente raro.
Aqui eu encerro essa parte da minha adaptação, deixando claro que essas são regras que posso vir a alterar a medida que forem sendo utilizadas. Agradeço a todas as sugestões que recebi ao longo da criação dessas regras. Foram várias pessoas e mesmo aquelas cujas idéias não utilizei, acabaram por me ajudar a chegar no modelo acima. O próximo passo é cuidar de alguns detalhes quanto a regras menores que desejo converter, como o uso de armas de fogo, assim como uma regra nova para as rolagens de Dark Powers do sistema. E nesse ponto também, se alguém tiver sugestões eu adoraria ler.
Olá,
Muito bom post, Kimble! Adorei a mecânica e acredito que foi tão versátil que dá pra adaptar até pra outras situações além dos testes propostos originalmente. 🙂 Talvez até pros testes de poder. ;D
Bonanças.
Atenciosamente,
Leishmaniose
(que curte muito D&D, mas anda querendo algo que não tenha que ficar contando PV em combate)
Valeu 🙂 Estou pensando em usar uma versão modificada do modelo acima na campanha de Dark Sun, pra fins de teste e aprimoramento. Vamos ver o que os jogadores acham.
Olá,
Em Dark Sun é uma boa testar. 🙂 Depois apresenta os resultados. Teve um amigo meu que curtiu pacas esse sistema de insanidade e eu confesso que senti mó vontade de tentar uma mestrada em Ravenloft – mas acho que a facul, em penúltimo ano de curso, vai me puxar pro chão, de volta.
Bonanças.
Atenciosamente,
Leishmaniose
Cara esse post esta muito bom, com certeza eu vou usar algumas das suas ideias.
Eu ainda colocaria umas regras a mais como PAQUITOS COM O DM.
Digamos que os jogadores em uma situação de stress, com os PVs na rapa o mestre vira para o jogador com a cara de mais frustrado é diz: – Quer fazer um paquito comigo? Eu posso fazer com que esta matilha de lobisomens não lhe veja. (ou outra vantagem mais mecânica como pulso de cura)
Esse o jogador pedir o que eu quero por esta vantagem concedida você pode omitir, mentir ou dizer a verdade (nos últimos casos) como que ele terá que geram novas peculiaridades (ouvir vozes na mente, tremores ou vomito constante).
Muito foda.