Smallville Roleplaying Game é um RPG baseado na série de televisão Smallville, desenvolvido pela Margaret Weis Productions e escrito por Cam Banks e Josh Roby. Antes de começar a falar sobre o sistema, quero deixar algo claro: NÃO gosto da série e quando esse RPG foi anunciado, eu imaginava que ele seria mais um produto caça-níquel, feito somente para lucrar em cima de uma marca. Como eu estava enganado.
O sistema utilizado é o Cortex, próprio da editora, com modificações que o levaram a ser chamado de Cortex Plus. A diferença dele para outros sistemas similares é o que ele se propõe a representar. A maioria dos sistemas de super-heróis, mesmo quando não tenta acompanhar os poderes de forma minuciosa, ainda mantém o foco do sistema no uso destas habilidades especiais.
Em vez disso, o Cortex Plus se concentra nas inter-relações, conflitos e valores pessoais dos personagens da campanha. Os poderes são tratados como ferramentas para história, não como objetivo ou cerne do sistema. Um personagem usando Super-velocidade, por exemplo, não possui qualquer mensuração de velocidade ou distância percorrida em seu turno. Em vez disso, o poder permite que ele faça coisas como participar de cenas onde normalmente não poderia estar.
O sistema de resolução de ações é feito para reforçar esse conceito. Em vez de um modelo de atributos (ou os diversos termos com funcionamento similar), o Cortex Plus usa um modelo de Valores. Eles acompanham a importância e a visão que os personagens têm quanto a seis conceitos: Dever, Glória, Justiça, Amor, Poder e Verdade. Todos os personagens-jogadores possuem os seis conceitos. O que diferencia um personagem do outro é o quanto ele valoriza e encara cada um deles individualmente. Essa prioridade e interpretação são representadas por uma escala de dados, que vão de d4 a d12, e uma afirmação individual que cada jogador escreve para cada um dos conceitos do personagem.
Usando exemplos do livro, Clark Kent possui d10 em Justiça e a afirmação ‘Eu tenho que proteger inocentes’. Isso demonstra a importância que ele dá a esse conceito (d10) e o que ele significa para o personagem (salvar inocentes). Já Lois Lane possui d6 em Justiça e a afirmação ‘Pessoas ruins devem pagar’. Isso demonstra maior moderação quanto ao conceito (d6) e uma atitude diferente quanto ao que ele representa para ela (fazer as pessoas pagarem por seus crimes).
Além dos Valores, o jogo também acompanha os Relacionamentos entre os personagens. Todos os personagens-jogadores possuem relacionamentos entre si – seja por amizade, família, antagonismo, ódio ou qualquer outro sentimento – e com outros personagens importantes para eles na campanha. Da mesma forma que com os valores, cada personagem-jogador define um certo dado para cada relacionamento de acordo com sua importância, assim como uma frase que defina o relacionamento. Novamente retornando ao livro, Clark Kent define seu atual relacionamento com Lana Lang como ‘ela não é a garota que conheci no colégio’ (e d6 na sua importância). Já seu relacionamento com Lois Lane é ‘não posso contar meu segredo para Lois’ (e d12 na sua importância).
A base do sistema usa paradas de dados e um modelo de acompanhamento de ações por cena, como Storytelling. As paradas de dados são determinadas comparando os Valores e Relacionamentos adequados para a situação. Numa situação hipotética, Clark Kent salvando Lois Lane poderia usar um d10 (seu valor em Justiça e proteger inocentes) e um d12 (seu valor no relacionamento com Lois). Os dois dados seriam jogados, somados e comparados com uma dificuldade imposta por uma parada de dados própria do Mestre (no caso de situações onde não exista uma oposição clara) ou de outro personagem.
Em caso de sucesso, o personagem consegue fazer o que pretende, caso não exista mais oposição. A questão é que na maioria dos casos onde há uma dispusta entre personagens, ela existe. Nessas situações, o sucesso alcançado pelo primeiro jogador se torna a nova dificuldade da situação. E seu oponente deve superar essa nova dificuldade com sua própria parada de dados. Se o segundo jogador conseguir alcançar a dificuldade, então seu resultado se torna a nova dificuldade a ser superada pelo primeiro jogador. E assim as jogadas se sucedem, até que alguém falhe.
Quem falha sofre Stress. Existem várias formas de Stress no jogo, tanto físicos (ferimentos, exaustão) como mentais (medo, dúvida, raiva). Ao sofrer stress suficiente, o personagem deixa de ser capaz de continuar a agir na cena. O que significa que seu antagonista é bem sucedido no que desejava fazer ou que o personagem não pode mais continuar no seu curso de ação original, no caso de não haver oposição.
Esse modelo é usado em quase todos os testes, não importa se em uma discussão entre personagens, uma pesquisa na biblioteca ou uma luta no topo de um prédio em chamas. Isso torna o jogo muito focado nas relações estabelecidas e valores individuais, pois eles são de fato importantes quando verificado se um personagem é capaz de realizar uma certa ação. Quanto mais importante forem o Valor e o Relacionamento do personagem ligados a ação pretendida (como proteger uma pessoa amada ou causar problemas para um grande inimigo), mais as chances dele ser bem sucedido.
Além de Valores e Relacionamentos, existem outras características que podem ser adquiridas para aumentar as paradas de dados. Elas vem na forma de Distinções (características que definem os personagens e servem ao mesmo tempo como vantagens e desvantagens), Habilidades (os super-poderes do jogo), Equipamentos (itens fora do comum, como o cinto de utilidades do Batman), Extras (NPCs de menor importância que servem como aliados) e Locações (lugares que dão algum bônus para os personagens). Assim como os Valores e Relacionamentos, cada uma dessas características segue uma escala em dados que vai de d4 a d12. Mesmo que um jogador consiga encaixar vários dados numa situação, o padrão é que somente os dois maiores valores rolados numa parada de dados são considerados. Além disso, várias dessas características trazem algum tipo de desvantagem associada (caso das Distinções ou o uso de algumas Habilidades) ou tem um número limitado de usos por sessão (caso dos Extras e Locações). Isso faz com que, mesmo havendo uma grande quantidade de opções para adicionar dados a parada, a única coisa que os personagens-jogadores sempre vão poder contar são seus Valores e Relacionamentos.
Em vez de um sistema de pontos, escolha de classes ou algo similar, a construção de personagens é feita em conjunto com todos os jogadores num modelo de ‘Trilha’ ou organograma, parecido com o utilizado por alguns autores de romances, roteiros e séries quando escrevem suas obras. A cada passo da Trilha, o jogador toma uma decisão importante quanto à vida do personagem. Como era a família onde ele nasceu? Como foi sua adolescência? Qual seu objetivo de vida? Cada escolha feita define algumas características que o personagem pode aumentar. Um personagem que foi esportista durante a juventude tem acesso a mais recursos ou aliados, enquanto um geek tende a ser melhor numa habilidade pessoal ligada a seus interesses. Além disso, a forma como o processo é desenvolvido faz com que ao final da construção de personagens os jogadores não tenham definido somente suas próprias fichas como muitos dos NPCs, locais e tramas importantes da campanha.
E aqui vou terminar o resumo do sistema e evitar me alongar mais nele, pois deixaria essa resenha muito maior. O jogo tem diversas outras coisas que gostei muito, como a evolução ser influenciada pelas falhas sofridas ao longo das sessões, mas se continuar a falar disso tudo teria que fazer uma resenha em três ou quatro partes. O sistema todo ocupa somente metade do livro. O resto foi usado para adicionar a ficha de personagens importantes da série e um resumo detalhado da mesma. Pessoalmente, essa segunda parte foi descartável para mim. Já a primeira valeu cada centavo.
O sistema é agradável, diferente, se sustenta à longo prazo e não fica isolado a um pequeno nicho onde consegue funcionar. Apesar de usar Smallville como base, a forma como as regras são apresentadas torna fácil usar delas em quaisquer outros cenários onde os relacionamentos entre os personagens sejam o foco da história. Disputas políticas em Roma, as intrigas em uma corte na Idade Média ou o simples dia-a-dia de alguns estudantes do colegial, tudo isso seria facilmente representado no sistema com pouquíssimas alterações. Tanto que o mais comum de se encontrar no fórum oficial do jogo (ou qualquer fórum grande com fãs do sistema), não são descrições de campanhas em Smallville, e sim adaptações dos fãs para os mais diversos cenários, de Star Wars a True Blood.
Isso foi o que mais me admirou enquanto eu lia. Mesmo com algumas citações da série de televisão aqui e ali, em muitos momentos eu começava a pensar em como é fácil adaptar o sistema para as mais diversas ambientações e histórias. Ainda mais porque boa parte do que é descrito é feito de forma suficientemente genérica para que uma conversão para outro cenário seja somente uma questão de alterar nomes.
Não que o jogo seja perfeito. Ele pressupõe um grupo de jogadores que esteja interessado em se reunir para participar da construção coletiva de uma história através do jogo. Sem nunca esquecer que a diversão do grupo não é um trabalho único do Mestre, e sim um esforço conjunto de todos os membros. Apesar de muita gente defender essa idéia como seu tipo de jogo ideal, encontrar um grupo que realmente pratique isso é difícil. Consigo pensar em poucos grupos com quem já convivi em que conseguiria usar desse sistema.
A evolução dos personagens é lenta e eles tendem a ficar num mesmo nível de ‘poder’ pelo resto da vida. Em compensação, suas características tendem a estar sempre mudando. Para evitar me alongar muito, não vou entrar em detalhes, só dizer que a forma como o sistema de experiência foi desenvolvido faz com que exista uma constante variação nas características das fichas. Uma evolução lenta não me desagrada, porém sei que muitos jogadores não gostam disso.
Sobre o livro, ele poderia ser mais bem organizado, o que dificulta a localização de certas regras específicas. Além disso, por seguir alguns padrões tão diferentes da maioria dos RPGs mais famosos, alguns pontos poderiam ter sido mais explicados. Os autores têm sido muito prestativos nesse sentido, respondendo às duvidas dos fãs no fórum oficial do jogo.
Além disso, a forma mais abstrata como o sistema trata a resolução de ações (não existem manobras de combate, uma corrida e um duelo são resolvidos da mesma forma, etc.) tende a funcionar melhor em histórias onde combates ficam em segundo plano, pois não há um sistema detalhado ou que busque tornar o processo o foco da sessão. Mesmo a ação tende a algo mais próximo de seriados como Roma do que séries como Spartacus.
Minha avaliação final é que o jogo é ótimo. Vale a pena, mesmo para quem não gosta da série Smallville. Ele é facilmente adaptável para outras ambientações com foco nos relacionamentos, segue uma mecânica interessante e diferente, além de ser uma leitura agradável (lembrando minha observação acima sobre a organização do texto).
Ainda bem que apesar da minha reação inicial negativa ao livro, resolvi tentar ler. Porque é o tipo de jogo que me pegou de surpresa e rapidamente se tornou um daqueles sistemas que sempre vou ter na minha coleção. Às vezes, é bom estar errado.
Foi você que fez um exemplo do onograma não foi? No Ponei Riders… claro que foi tu ´o dono do blog.. o memória…
Bem como já disse lá gostaria muito de jogar esse jogo, mesmo gostando do M&M, estou numa fase, "menos porrada".
Só para ter certeza, você determina os dados de forma que deseja, certo? Não tem "uma quantidade X de pontos para gastar"? Se for é beeeeem narrativo mesmo!
No processo de criação de personagens? Cada passo te dá opções quando ao que aumentar, ligadas ao histórico do teu personagem. Às vezes é mais restrito (este ou este Valor), mas na maior parte é bem aberto, permitindo escolher aumentar entre as várias opções na ficha.
Kimble, confesso que só cliquei no link por confiar no seu trabalho e, graças aos deuses o fiz.
Fiquei sinceramente empolgado com o sistema e irei aprendê-lo. Vejamos se consigo convencer meu grupo de D&D4E a experimentar.
Parabéns MESMO!
Eu ia morrer eu não ia saber que cortex erra um rpg Narrativo. Isso me parece fantastico, acho que estou desatualizado. Não foi esse o mesmo sistema que fez supernatural RPG? Se for acho que vou começar a prestar mais atenção…
Acho que vou dar uma olhada nesse sistema pra uma história de AGoT que devo narrar. Boa César!
O do Supernatural é o Cortex, o do Smallville é o Cortex Plus (uma '.5' do sistema). Tem outra versão do Plus (com algumas mecânicas mais tradicionais) que foi usado na adaptação do seriado Leverage. E logo devem lançar uma versão somente com mecânica do sistema, onde o Mestre vai poder escolher quais aspectos do sistema usar.
O Leverage eu até ignorei, mas esse 'básico desligado de ambientação' é um que quero ler quando sair.
Eu estou passando pelo mesmo processo com meu grupo de DS. Convenci o pessoal a jogar vendendo a idéia do sistema primeiro, antes de falar que era o rpg de Smallville (para evitar alguma atitude negativa pela associação com a série). Com sorte, a gente começa logo logo a campanha.
E valeu 🙂
Olha, pelo menos a parte do sistema de Trilha é algo que eu pretendo usar em futuras campanhas. É fácil de adaptar pra outros jogos (retirando a parte mecânica) e ajuda muito a desenvolver uma história legal.
onde eu posso encontrar um link e baixar smallville rpg gratuitamente?