Após a apresentação da peça Uma Ilíada, no último sábado, o ator Bruce Gomlevsky, em bate-papo com o público, fala da Ilíada como “uma ferramenta de compreensão dos dias de hoje”. A peça, belíssima, estreou no último 5 de novembro e está no no Teatro I doCCBB, com seis apresentações semanais (menos às terças-feiras, quando o CCBB fecha). Uma Ilíada trata-se de uma adaptação da peça escrita pelos americanos Lisa Peterson eDenis O’Hare, com tradução de Geraldo Carneiro. Ela é dirigida e interpretada brilhantemente por Bruce.
Ilíada é o poema épico atribuído a Homero, que retrata o episódio da Ira de Aquiles no décimo e último ano da Guerra de Troia. As disputas por bens, as revoltas e as vinganças são o foco desses episódios que nada mais são que a tradução de conflitos e emoções que se passam na alma humana. O furor de Aquiles diante da morte de seu melhor amigo, Pároclo, morto por Heitor, é talvez o elemento fundamental que nos leva a pensar em todas as outras guerras que acontecem até os dias de hoje e em todas as mortes desencadeadas pelas paixões humanas.
A peça é excelente por diversas razões. Trata-se de um texto que, como diz o programa, “realça a atualidade da narrativa homérica”. Assim, a adaptação permite que se possa acompanhar o poema homérico lançando pontes sutis de acessibilidade ao público, dado que em alguns momentos, pela quantidade de nomes gregos que são falados, o texto pode parecer um pouco mais difícil do que de fato é. Essas pontes são, por exemplo, algumas explicações de termos usados no texto, sem que fique excessivamente didático ou enfadonho.
Em segundo lugar, o tratamento dramatúrgico conferido ao texto acompanham a universalidade e a atemporalidade dos temas tratados na obra. Todas as opções da direção e da produção do espetáculo são extremamente felizes em sublinhar o essencial. No que tange à dramaturgia, há, em primeiro lugar, e já causando impacto aos espectadores que vão chegando, um cenário limpo, minimalista, que convida a certa introspecção. Um círculo de quinze velas é disposto no palco e o aedo, contador de história que irá nos contar a Ilíada, está ali, quieto, sentado, como se em posição de meditação. A luz é baixa e a indicação é de que nos concentraremos em um texto importante.
Ao final da exibição de sábado, em bate-papo com os espectadores que ficaram depois da apresentação, Bruce explica, motivado por perguntas do público quanto ao cenário, que, durante os ensaios, pensou em colocar uma série de objetos, mas aos poucos foi vendo que isso não seria necessário e sua opção acabou sendo a de um cenário vazio de coisas. Assim, Bruce Gomlevsky quis resgatar o lugar do contador de história, sublinhando a importância da palavra no espetáculo. E, de fato, o essencial é a vida dos personagens e das paixões que são contadas, cujo acompanhamento e entendimento são favorecidos por uma atuação absolutamente brilhante do ator. É um monólogo sem recursos visuais além do jogo de iluminação e do acompanhamento do contra-baixo acústico de Alana Alberg e a beleza reside exatamente na simplicidade com que tudo foi escolhido e no realce feito aos movimentos da alma.
Posso destacar dois momentos mais emocionantes de Uma Ilíada: o primeiro seria o da dor profunda do pai de Heitor, que pede o corpo de seu filho morto a Aquiles, enfurecido; é o momento em que Aquiles consegue arrefecer sua raiva e, por compaixão, entrega o corpo e deixa de sentir a fúria. O segundo seria o da enumeração de incontáveis outras guerras que, ao longo da humanidade, destroçaram povos, países e pessoas. Nesses dois momentos é possível sentir a dor do pai de Heitor graças à tocante interpretação de Bruce, e também a perplexidade causada pela listagem de uma miríade de guerras que vêm acontecendo ao longo de anos e, naquele momento, são ainda mais flagrantemente sem sentido, ainda que tenham muitas razões ditas ou não-ditas para acontecer.
É importantíssimo frisar, finalmente, a beleza da iluminação, de Elisa Tandeta, e a eficácia da direção de movimento, de Daniella Visco. Em um cenário sóbrio, de decoração minimalista, são o texto, a voz, o movimento e a iluminação, além da sonoridade que o contra-baixo nos proporciona, o que permitem que a peça alcance êxito em trazer ao público mais uma versão de um texto tão antigo, tantas vezes discutido e interpretado de múltiplas maneiras. A iluminação de Elisa, fantástica, provoca sucessivos impactos estéticos e auxilia a imaginação do espectador que ouve os episódios revelados pelo aedos ou contador de histórias da tradição grega.
Para finalizar, mais um diferencial nessa peça é a proposta de um bate-papo com o ator após os espetáculos. No último sábado, Bruce fez questão de dizer que o espetáculo não foi feito para literatos e especialistas em Grécia Antiga, e de fato seu objetivo é também entender, nessa conversa final, o que pode ter ficado confuso, difícil ou inacessível para o público.
Ficha Técnica
Texto: Lisa Peterson e Denis O’Hare
Tradução: Geraldo Carneiro
Direção e interpretação: Bruce Gomlevsky
Contra-baixo acústico: Alana Alberg
Assistente de direção: Lorena Sá Ribeiro
Direção de movimento: Daniella Visco
Iluminação: Elisa Tandeta
Operador de luz: Rodrigo Miranda
Figurino: Carol Lobato
Cenário: Bruce Gomlevsky
Fotos: Dalton Valério
Efeito especial: Derô Martin
Trilha sonora original: Mauro Berman
Arte e identidade visual: Mauricio Grecco
Projeto Gráfico: Thiago Ristow
Assessoria de imprensa: João Pontes e Stella Stephany
Direção de produção: Carlos Grun/Bem legal produções
Idealização e realização: Bruce Gomlevsky/BG ArtEntretenimento LTDA.
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