Debora Lamm e As meninas da Gamboa no monólogo Mata teu pai

O monólogo ‘Mata teu pai’, montagem da Cia. OmondÉ que estreou em 2017 e se constitui na primeira peça de uma trilogia ainda não concluída, termina nova temporada carioca neste final de janeiro. Com direção de Inez Viana e texto de Grace Passô, a peça inspira-se em Medeia, trazendo Debora Lamm na atuação. A atriz, emprestando sua força ao personagem clássico, embora revisitado, dirige seu discurso ao público e é acompanhada, no palco, pel’As Meninas da Gamboa, um grupo de dez senhoras com mais de 65 anos, moradoras da região da Gamboa, no Rio.

‘Mata teu pai’ tem vários elementos bastante interessantes, na medida em que resgata o mito sem se aferrar a ele, conferindo-lhe nova roupagem. A personagem a que Debora cede sua voz e seu corpo é, em verdade, uma estrangeira em todo o sentido que a palavra pode carregar: é uma estranha na terra em que está e estranha a terra em que está. Expressa seu estranhamento na forma como, ali, se cura uma febre e não renuncia ao ceticismo das crenças e hábitos desse lugar que a recebe, mas que talvez não a acolha. É uma refugiada ou uma expatriada, definitivamente uma imigrante. Certamente, alguém excluído do sentimento de pertencimento. E, claro, imigrante mulher, com as vivências de violência que lhes são típicas e a experiência de maternidade que lhe é inconfundível.

Outro ponto que vale a menção é quando, logo no início, a protagonista faz breve interrupção na leitura e, dirigindo-se à plateia, pede para que as pessoas larguem suas bolsas. Essa injunção, impregnada de assertividade e gentileza, provoca certo impacto: fica-se na dúvida do que fazer com a própria bolsa. A sequência do pedido vem com o apontamento de que, se uma bomba fosse jogada numa cidade, grande parte dos corpos mortos seriam de pessoas agarradas às próprias bolsas. Não há como não prestar atenção a esse pedido. Penso nisso imaginando seus corpos – o meu incluído – agarrado a uma bolsa como se se agarra à própria sorte. E o impasse causado – devo deixar a bolsa de lado ou não?, estou errada em segurá-la?, desobedeço ao pedido que é um pouco uma ordem?, por que a estou segurando, afinal? – provocou-me um processo de tomada de consciência de minha relação, naquele momento e em outros, com esse objeto idiossincrático que é a minha própria bolsa.

Outro elemento bastante interessante é a própria presença d’As meninas da Gamboa. Elas fazem, evidentemente, toda a diferença, intensificando a dramaticidade do monólogo. Com sua dosada participação e a preponderância de sua presença em um alinhamento de cadeiras sobre as quais, sentadas, assistem e ouvem a tudo, elas evocam certo lugar de tribunal. O cenário não é o de um julgamento, mas não está tão longe dessa ideia, dado que há um discurso, o da estrangeira, e há a intenção de uma morte, como uma retaliação ou punição a um comportamento. Não é um julgamento formal ou oficial, claro, mas há certa atmosfera inerente à construção de um juízo moral. Por outro lado, e bem contraditoriamente com a imagem que acabo de descrever, elas também remetem a uma ideia de alienação, no sentido de alienação de si, já que estão ali, acompanhando tudo, mas sem um posicionamento ou uma criticidade em relação aos fatos ou a si mesmas. Há um momento em que, por exemplo, a protagonista pergunta se todas elas votaram na Prefeita da cidade, personagem referida em alguns momentos, e todas elas assentem, de maneira passiva. Nesse caso, sua função seria o contrário àquela de um júri, já que há, ao mesmo tempo e paradoxalmente, uma sensação de desvio, de que estão ali mas não estão ali, de que estão ali mas só em parte. O fato de se recusarem a serem chamadas de ‘mãe’ agudiza essa ideia de que escapam. Ou seja, ensejam uma estranha sensação de presença um tanto ausente. A forma como aparecem, como permanecem, como vão e vêm, como estacionam em suas posições a um só tempo cúmplices e alheias, propõe certo surrealismo à cena.  

O texto tem grande força e a dramaturgia o acompanha, certamente. Há vários momentos e frases marcantes, como aquela que diz que “(…)adoecemos de amor por pessoas que nem amamos”, ou algo assim, ideia tão acertada quanto incompreensível. No entanto, em alguns momentos do monólogo, houve certa repetição que talvez não tenha um efeito tão interessante quanto aquele próprio à repetição textual em processos de leitura de texto. A repetição, em monólogos de impacto, por vezes ultrapassa certa medida desejável, o que pode causar grande cansaço. Perde as funções poética e de conferir ritmo que lhes são inerentes e tampouco serve de auxílio à compreensão de algum sentido ou conteúdo da fala. A ênfase tem seu lugar na repetição, inequivocamente, mas até que ponto é preciso imprimir essa circularidade demasiadamente insistente ao texto de um monólogo? Foi a impressão que tive de alguns momentos no final de Mata teu pai, mas esse tem sido um traço que tenho observado em alguns monólogos que tive a oportunidade de assistir, o que me suscita a indagação acerca do efeito narrativo da repetição em cada um dos diferentes dispositivos em que ela acontece: na leitura e no palco

Ficha Técnica

Texto: Grace Passô

Direção: Inez Viana

Atriz: Debora Lamm

Participação: As Meninas da Gamboa

Direção de produção: Bem Medeiros

Produção executiva: Matheus Ribeiro

Iluminação original: Nadja Naira e Ana Luzia de Simoni

Adaptação de iluminação: Sarah Salgado e Iaiá Zanatta

Direção musical: Felipe Storino

Direção de movimento: Marcia Rubin

Foto e vídeos: Elisa Mendes e Rodrigo Menezes

Realização: Eu + Ela Produções Artísticas

Produção: Cia OmondÉ

SERVIÇO  

Espetáculo: “Mata Teu Pai” Temporada:de 10 a 26/01 de 2025 Local: Espaço Cultural Municipal Sérgio Porto (Rua Humaitá, 163 – Humaitá) Dias e horários: sextas e sábados às 20h. Domingos às 19h Duração: 80 min. Classificação etária: 14 anos Informações: (21) 2535-3846 e 98587-0494
Capacidade: 130 lugares
Ingressos:R$40 (inteira) e R$20 (meia)

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