Reflexões sobre o justo, o certo e o bom no intimismo da peça “A alma imoral”, com Clarice Niskier

Ainda bem que, em A alma imoral, peça de teatro em que Clarice Niskier adapta o livro A alma Imoral, de Nilton Bonder, com supervisão de Amir Haddad, a atriz nos autoriza, logo de início, a nos perdermos em algumas passagens do texto, a não nos preocuparmos demais se acontecer de não seguirmos com atenção contínua e plena por alguns trechos, caso tenhamos sido capturadas por ideias contidas em trechos anteriores. Essa outorga me relaxou para que isso acontecesse comigo, mesmo sabendo que eu teria de escrever um texto sobre a peça depois. De fato, há certezas muito anteriores a qualquer racionalidade, isso que Clarice nos diz nesse momento inicial se adequa a mim e aos meus encontros com a arte, a atenção flutuante (essa sugestão que encontramos nos livros de psicanálise e que pode ser algo aplicado aqui) é o que algumas obras pedem de nós, efetivamente.

Há outra curiosidade interessante que nunca vi em nenhum outro espetáculo e que se liga à permissão para se perder em pensamento: trata-se do momento de pedir que a atriz repita algum trecho que talvez tenha ficado confuso ou que queiramos escutar uma vez mais. Ela explica-nos, no começo, que quando estiver contando algumas parábolas, irá pausar sua fala para beber água. Nesse momento podemos falar uma palavra que remeta à parte que gostaríamos que ela repetisse. Ela irá então associar e repetirá o trecho, se houver essa demanda, e na noite em que assisti ao espetáculo, houve de fato esse momento, que despertou muita comoção e foi seguido por um sábio alívio cômico propiciado por algumas piadas que Clarice contou, algumas ligadas às temáticas do texto, outras não, mas sempre criando um clima de intimidade ao nos revelar também o contexto em que ouviu a piada ou as circunstâncias e os desdobramentos peculiares de quando as contou. As piadas, diga-se, não eram em vão, e mesmo aquelas nem tão ligadas assim à temática do texto (necessariamente ampla), faziam sentido. O humor é uma outra forma de abordar diretamente algumas questões, e de modo leve. Esse jeito de Clarice nos falar dos entornos das piadas, ou de reações a elas, ou do que ela mesma sente em relação ao texto é tecido de forma muito delicada e acolhedora, como se fôssemos uma visita de sábado à tarde tomando um café em sua casa e deslindando umas anedotas. Há toda uma ambientação de proximidade.

Ter tido a oportunidade de assistir a essa peça agora, nesse contexto mundial no qual todos estamos imersos, não deixa de ser um acaso digno de nota. O espetáculo se origina a partir do texto do livro do rabino Nilton Bonder, após se encontrarem há quase 20 anos em um programa de entrevistas e motivado pelo estranhamento suscitado por uma misteriosa Dona Lea que, à época, enviou um fax à produção explicando à atriz que ela não podia ser uma judia budista, como havia declarado no programa. Dona Lea escrevia-lhe que: ou se era bem judia, ou se era bem budista. Clarice supôs que essa regra não seria nada budista (partilho dessa suposição) e nos fala que o rabino não a crucificou. A peça, ela nos revela, é uma resposta, ainda que tardia, à dona Lea. E o texto, belíssimo e instigante, algumas tantas vezes misterioso, um texto que nos convida ininterruptamente a pensar em nossa alma, em sua intrínseca imoralidade, fala de estreiteza e de hábitos,  do bom e do correto, de tradição e de traição, de fidelidades e fidelidades (quantas existiriam, afinal?, e como se desdobra um só conceito em muitas e muitas nuances?). A peça fala de paz. Assisto à peça precisamente nesse momento em que estamos acompanhando (levados por ou escolhendo essa ou aquela narrativa explicativa) os horrores incidindo ainda mais sobre a população de Gaza. Que, aliás, cercada, vive com possibilidades muito estreitas de sobrevivência há muitas décadas.

É claro que, voltando à profundidade do texto que Clarice nos apresenta, fui levada pelos pensamentos que se desprenderam das reflexões sobre o certo que é errado e o errado que é certo. A partir do que ela foi dizendo, fui também pensando – não sei se naquele momento ou na reverberação da peça sobre este em que agora escrevo -, que 2 + 2 não são 4 quando topamos ir além do âmbito da matemática, e o certo nem sempre é certo. Se nos ativermos às estreitezas, ao hábito e à tirania da obediência, estaremos excluindo elementos complexos dos variados contextos em que se impõe a soma 2 + 2. Existem aqueles momentos em que o resultado da soma é maior do que as suas partes, não existem? E, como Clarice Niskier diz logo no comecinho, quando achamos que o que vemos é tudo, estaremos de fato deixando de ver, porque nem consideraremos que há algo que nos escapa da visão, que 2 + 2 pode ser que não resultem em 4 nalguns casos. As parábolas nos ajudam a perceber aquilo que nem sempre uma lógica racional nos fará compreender ou que uma operação matemática de calculadora logrará resolver.

Talvez não seja possível falar muito mais sobre essa incrível peça de teatro sem cair numa explicação restrita, estreita, banal. Exclusivamente racional, necessariamente incompleta. Não é à toa que há 17 anos o texto está em cartaz, que algumas pessoas já viram a peça 10 vezes, que muitos a esperam após o fim do espetáculo para fazer observações (tudo isso contado a nós naquele clima intimista que enriquece o texto em si, que o alargam, essas reações que, ao serem compartilhadas conosco, nos deliciam ao tornar o público também personagem da peça que dialoga com o texto e traz suas impressões à atriz ao final). Quanto a mim, já havia tentado assistir antes, sem conseguir, por variados motivos. Mas acho agora, pensando em retrospecto, que vi no momento certo. Ou justo. Ou bom.

Serviço

REESTREOU em 13 de outubro (6ªf), às 20h

Teatro dos 4 / Shopping da Gávea

R. Marquês de São Vicente, 52/2º piso – Gávea / RJ

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