Terra dos Sonhos, como já comentei, é possivelmente o arco ideal para você apresentar alguém a série. Se por algum motivo a pessoa não goste de histórias em quadrinhos, ou está sem tempo, ler pequenas e excelentes narrativas fechadas em vinte e quatro páginas me parece o melhor. Acredito que é bastante difícil de se falar sobre Terra dos Sonhos, pois não existe uma coesão entre as quatro histórias, portanto me dirigirei a cada uma de forma independente e tentarei fazer uma conclusão com os temas comuns.
Eu comecei a ler Sandman pela belíssima edição chamada Calíope (Bela-voz em português, ainda que nenhuma tradução de Sandman a use). Nela conhecemos Richard Madoc, um escritor que está vivendo um sério bloqueio literário para seu segundo romance. Ele apela para o antigo gênio Erasmus Fry, cuja a fonte das idéias é na verdade a frágil musa de Homero, Calíope. Richard aprisiona a Musa e a estupra com frequência em busca de sua inspiração, o que acaba o levando ao total estrelato. Nessa edição descobrimos que ela já foi amante de Morpheus e que teve até mesmo um filho com ele, Orpheus. Um recém liberto sonho acaba por liberta-la no fim, almadiçoando Madoc por seus atos.
A primeira coisa que eu devo dizer sobre esta edição é algo que me faz ter muita inveja de Gaiman. As idéias que Madoc apresenta para histórias são simplesmente geniais, e fico bastante chocado ao pensar que ninguém nunca vai usa-las. A narrativa apesar de ser bastante linear e estruturada mantêm o ar onírico e misterioso de toda série, motivo até mesmo que a levou a ser a única revista de Sandman a ter seu roteiro exposto. Uma outra coisa bastante legal é que a história está simplesmente lotada de referências interessantes, vários títulos das obras de Madoc são apologias a outros autores (Cabaré do Dr. Caligari se refere ao clássico do expressionismo alemão Cabinet do Dr. Caligare, “O espírito que tinha metade de tudo” era um capítulo do livro de James Branch, “Figures of Earth”). Outras referências que encontramos são justamente aquelas utilizadas pelo bizarro traço de Kelley Jones, como por exemplo, o escritório de Gaiman, que acabou se tornando o escritório de Madoc. A história é excelente e assustadora ao mesmo tempo, talvez pela frieza como mostra os constantes estupros que Calíope sofre como se fosse uma coisa. Simplesmente uma das mais marcantes histórias de Sandman.
No segundo capítulo deste arco temos “Um sonho de mil gatos“, que é uma edição bastante interessante. Basicamente, um filhotinho de gato escuta que uma espécie de messias gata está na cidade para pregar sua palavra. Ela conta sua história de o que a fez buscar respostas com o “Gato dos Sonhos”, e a revelação que obteve do mesmo: o mundo já havia sido dos gatos, mais um dia, mais de mil humanos sonharam com o mundo como ele é hoje, e este passou a ser deles. A gata messias atravessa o país na busca por conseguir fazer com que mil gatos sonhem como ela em uma noite, para que o mundo possa voltar a ser deles.
Gaiman diz que esta foi a edição que ele escreveu mais rápido em toda série, ela teria levado apenas dois dias para ser finalizada. Esta também é a edição que estréia mais leitores em Sandman, ainda que para mim, seja a mais fraca das quatro histórias do arco. Outra curiosidade bizarra, é que existem diversos relatos de que ela teria sido destruída por gatos (Gaiman afirma que tem medo de ter revelado algum segredo desta raça, para causar esta reação). A coisa realmente interessante desta narrativa é que ela lida com uma idéia muito legal: realidade consensual, mas coloca isso de maneira bastante leve e pouco complexa. Gosto muito da poesia em que ele transporta a isso, no fim, sonhos são mais importantes que a realidade. Vale ressaltar também a genialidade do letrista Todd Klein nesta edição. Em suma, ela também é bastante linear, o roteiro é sólido com algumas viradas inesperadas, e a arte da mesma é excelente, tanto em perspectiva quanto em traço.
Chegamos então à estrelar “Sonho de uma noite de verão“, a única revista mensal de quadrinhos a ganhar um prêmio mundial importante de literatura (Melhor história curta, World Fantasy award de 1991). Nesta edição entendemos melhor o pacto entre Sonho e Shakespeare e aprendemos diversas lições importantes. A narrativa, vale mencionar, é completamente fiel ao período histórico e o perfil que os historiadores traçam sobre Shakespeare. O grande autor e sua trupe de teatro são detidos por Morpheus em sua viagem para que estes apresentem sua nova comédia para um estranho grupo de espectadores, a própria corte de Faerie. Junto a isto, ainda temos uma pequena história sobre laços de família e paternidade, através da relação de Hamnet com seu pai.
Muito já foi dito sobre esta edição, restando muito pouco para ser comentado. Primeiramente é uma das mais belas edições de Sandman, a arte de Charles Vess é simplesmente perfeita e suas fadas completamente deslumbrantes. A história é envolvente e divertida e gira em torno de uma das mais memoráveis peças de Shakespeare. Aprendemos sobre família, sobre o preço de sonhos concretizados e sobre histórias, descobrimos que estas, mais uma vez são mais fortes do que qualquer verdade.
Por fim, “Terra dos Sonhos” é concluída por “Fachada“, um conto sobre Urania Blackwell. A antiga parceira do Metamorfo, “Element Girl”, amaldiçoada por sua condição de absoluto poder. É um conto belíssimo sobre solidão e suicídio, eu diria que junto com Watchmen e DK, um dos melhores usos da figura de um “super-herói” nas HQs. Urania desistiu de combater o crime há muito tempo e vive de um seguro-deficiente trancada em seu apartamento. Tudo o que ela faz em casa é esperar a ligação de um dos agentes do seguro e ficar imaginando formas para conseguir se matar.
“Fachada” é um conto polêmico por que na superfície pode parecer que se trata de “uma garota que quer se suicidar por que ficou feia”, mas ele é bem mais complexo do que isso. Ainda que as pessoas comuns possam olhar espantadas para um ser poderoso como Urania, que aparentemente pode fazer tudo. Para ela, sua vida se tornou algo que não é nem remotamente humano, e com uma perspectiva de se passar os próximos dez mil anos inteiros em uma sala fumando cigarros com rostos vazios, nesta mesma condição. Acredito que no caso de Urania a Morte seja realmente uma libertação, e o final, ainda que previsível é bastante belo e verdadeiro. Collen Doran fez sua única participação aqui, o que é uma pena. Sua Morte é linda, e a forma como desenha mulheres apresenta muita naturalidade. Seu traço definitivamente dá personalidade a história apresentada e ao ritmo de Gaiman.
Além de todo o contexto onírico das quatro histórias existem mais coisas que as unem em “Terra dos Sonhos”. Uma boa observação de Neil Gaiman (no Sandman Companion), diz que elas na verdade falam sobre sonhos (no sentido de aspirações) e suas consequências. Madoc se utiliza de Calíope para saciar o seu sonho de se tornar um grande escritor, e depois que este é alcançado ele acaba pagando o preço por seus atos, sendo completamente esgotado de idéias. Shakespeare de forma semelhante, se dedica tanto ao seu sonho que acaba por negligenciar sua família. Urania Blackwell apenas anseia por uma vida normal, mas pela incapacidade da mesma de adaptação, assim como Morpheus ela acaba inevitavelmente desejando a Morte. Por fim, temos os gatos que ainda que completamente movidos por um sonho, são os únicos que não atingem seus objetivos, e talvez por isso, sejam os que se saiam melhor nas quatro narrativas. Existe muito perigo ao se concretizar um sonho, raramente ele se torna o que é esperado.
Ainda sim, se eu tivesse que apontar uma característica mais forte comum, ela seria que Sonhos são mais fortes do que a realidade, eles a delimitam. É engraçado que em Sandman #48, Destruição fala isso para seu irmão, ele diz que “Destino também delimita a liberdade, Morte também delimita a vida e sonho… Sonho delimitaria a realidade”.
Achei o texto interessante, mas dizer que “Fachada” fica perto de O Cavaleiro das Trevas ou mesmo de Watchmen é totalmente incompreensível, vejo outras pessoas falarem isso por “ser uma história de super-heróis” dentro de Sandman e isso se faz suficiente para muitos, porém existem tantas outras histórias como “Fachada” escritas por aí sem ninguém dar o mesmo valor.
Sem duvida, excelente arco. Um detalhe do Sonho é que a apresentação faz parte da “barganha” que Shakespeare fez com Lorde Morpheus. Fachada é no miniomo polemica, sucetivel a essa discusão, eu concordo com que existem outras historias Camino, uma que ninguem nunca comentou por exemplo é um classico do Mark Waid em que o Flash (Wally Est) ao se confrontar com um choque eminente de um helicoptero com uma ponte em Central City usa a formula do Johnny Quick para se tornar mais rapido e acaba congelando o tempo, e fica com medo de descongela-lo pois nao sabe como impedir o acidente, e Max Mercury consegue por alguns meinutos vibrar tao rapido para mostrar que mesmo que nao possa salavar todos ao mesmo tempo, é a sua intenção de salvar que faz a diferença; mas eu acho que é realmente uma excelente historia. Alias, esse arco tem elementos bem adultos de uma maneira geral, especialmente em Calliope, e um tipo de “verdade” muito especial sobre como um sonho pode mudar o mundo em conto de mil gatos. Adoro o Lorde Morpheus na forma felina. Mas meus personagens favoritos dessa serie ainda são as fadas do sonho, especialmente o Puck.
O que é o Puck!!!!!!!!!!!!!!!1