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“Aquarius” é o poder do cinema íntimo e metafórico de Kleber Mendonça Filho

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Podemos dizer que o cinema brasileiro está vivendo uma espécie de novo cinema novo. Só que diferente do movimento cinematográfico que ressignificou a cara e o sentido de nossa sétima arte, a partir de meados dos anos 50, hoje não busca referências estéticas externas, como no Neorrealismo italiano e a Nouvelle Vague francesa. Ela se basta em sua própria complexidade cívica.

Kleber Mendonça Filho tem sido um dos expoentes desse “movimento” com uma obra atenta ao retrato social da qual faz parte. Se em O Som ao Redor sua perspectiva levava a reflexão sobre as bases borradas da estratificação social brasileira, agora em Aquarius, seu incensado novo trabalho, ele observa com muita propriedade fílmica, como a dignidade de um indivíduo está atrelada à memória, e, especialmente, a preservação do que resta dela.

Sônia Braga faz aqui o seu melhor papel da carreira, desaparecendo dentro do olhar expressivo e lindamente enrugado de sua Clara, jornalista e crítica musical aposentada, que vive sozinha, de frente para praia de Boa Viagem, no apartamento Aquarius. Seu lar talvez seja o grande protagonista da história. Esse lar e o que incide sobre Clara.

Ela vive só, rodeada por uma numerosa coleção de vinis, nesse edifício à beira-mar. A construção é antiga e resiste ao redor de enormes e modernos prédios projetados por construtoras. Uma empresa mostra-se interessada em comprar seu apartamento. Os demais imóveis já foram adquiridos, porque a intenção é construir um novo empreendimento, já nominado de “Novo Aquarius”.

Dividido em três partes (“O Cabelo de Clara”, “O Amor de Clara” e “O Câncer de Clara”), a narrativa é uma afirmação, também, da sua vontade de permanecer no apartamento que dividiu com o marido, que foi seu escudeiro durante a batalha contra um câncer. Com isso, a relação de Clara com os emissários da construtora se torna cada vez mais tensa à medida que o tempo passa e ela se mostra inflexível em sua convicção de permanecer onde quer estar.

O roteiro, do próprio diretor, usa alegorias como o agressivo interesse de compra da empreiteira, a relação com envelhecimento e as cicatrizes (por dentro e por fora) pós cura desse câncer, para falar de contradições sociais sob o prisma individual. Tanto Clara, quanto os conflitos que a afetam, podem refletir o Brasil esquizofrênico de hoje.

A construção dramática de Kleber é cirúrgica e envolvente, ou você acha que quando Clara coloca um de seus discos para tocar, num dos momentos clímax, e “Another one bites the dust“, do Queen, invade sua sala, foi uma escolha qualquer? Aliás a trilha sonora é sensacional, conversando perfeitamente com o roteiro. Assim como a escalação do elenco, devidamente entrosado não só entre si, mas com a conjuntura de sua trama.

A discussão – afetiva e ressentida – de Clara com seus três filhos, é de uma beleza e precisão absurdas. Aquarius é, de fato, um filme muito poderoso. No final, num misto de domínio narrativo e estabelecimento do discurso, é inevitável correlacionar seus efeitos para o tempo em que vivemos. Daí lembramos da canção “O Quintal do Vizinho”, pérola esquecida e subestimada de Roberto Carlos, que Kleber, numa sacada magistral, coloca numa das cenas, cuja letra, no contexto do filme, soa banhada de cinismo.

“Sonhei que entrei
no quintal do vizinho
E plantei uma flor
No dia seguinte ele estava sorrindo
Dizendo que a primavera chegou
E quando eu abri a janela
Estava um dia tão lindo
No outro quintal
O vizinho sorrindo…”

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Por
Cadorno Teles -

Cearense de Amontada, um apaixonado pelo conhecimento, licenciado em Ciências Biológicas e em Física, Historiador de formação, idealizador da Biblioteca Canto do Piririguá. Membro do NALAP e do Conselho Editorial da Kawo Kabiyesile, mestre de RPG em vários sistemas, ler e assiste de tudo.

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