Azul é a cor mais quente, dirigido por Abdellatif Kechiche e vencedor da Palma de Ouro 2013 em Cannes, conta ao longo de três horas, o processo de amadurecimento emocional de Adèle, uma adolescente que se descobre fascinada por outra mulher.
O que se fala por alto, ao ouvir rumores sobre o filme, que se trata de um filme fetiche, que usa a sexualidade e a beleza das atrizes, Adèle Exarchopolou e Léa Seydoux, como fatores indiscutíveis de geração espontânea de interesse no espectador. Mas que cairia facilmente também nas garras de crítica, pelo tipo de abordagem enfraquecer a possibilidade de uma trama mais séria. Não posso dizer que o filme é completamente livre e inocente de tais acusações, porém, de modo algum se resume a isso e, pelo contrário, trás personagens, diálogos e soluções cinematográficas muito interessantes.
O fetiche da câmera está na atriz que interpreta Adèle. Em praticamente oitenta por cento do filme, o quadro é de close. De maneira geral, reportando-se a todos os atores, mas quase sempre preenchido pelo rosto, os cabelos presos de maneira bagunçada, porém charmosa, e pela boca semiaberta de lábios carnudos e bem desenhados de Adèle. Ela é a beleza exuberante e selvagem que vamos acompanhar quase sem respiro para vermos outros cantos do mundo. A câmera se abre um pouco quando a personagem de Léa Seydoux, Emma, aparece. Ainda em close, mas agora um close duplo.
Falo sobre essa fetichização do olhar perante a protagonista para deixar claro que, por outro lado, a relação lésbica é mostrada de maneira realista e delicada, sem as mesmas armadilhas.
Vários assuntos tocados ao longo da trama chamam a atenção:
– O amor pela literatura e os textos que nos trariam esclarecimentos até hoje de sentimentos não desvendados, tática que sempre me atraiu no cinema por ser uma maneira do roteirista deixar dicas de possíveis leituras a serem feitas;
– A dificuldade de “sair do armário” e o preconceito vivido no colégio, sobretudo pelo grupo de amigas mais próximas, independente do quão moderno e liberal parecer o mundo em que vivemos;
– As dificuldades de se manter um relacionamento com uma pessoa rodeada por um universo cultural muito diferente do seu, e até mesmo com filosofias de vida e de carreira bastante opostas. Adèle se sente constantemente deslocada. No meio dos amigos de Emma, com suas conversas intelectuais ou numa boate lésbica, cercada de mulheres masculinas se beijando. Seu olhar parece estar o tempo inteiro tentando decifrar o mundo à sua volta. Nesse sentido, temos uma justificativa clara pela escolha, aparentemente fetichista, de termos acesso ao mundo quase que totalmente refletido pelo olhar de Adèle, em seus closes sufocantes. Temos seu ponto de vista, seu constrangimento, suas inseguranças.
Em caso original e intrigante, fica em aberto a possibilidade desse amor devastador e sexualmente realizador que Adèle sente por Emma não ser uma prova indiscutível de seu lesbianismo, mas de uma atração e fascínio incondicional por esta mulher específica. Não me pareceu muito claro se esta escolha sexual era sua escolha em definitivo ou se Emma, e apenas ela, preencheu por completo suas expectativas de um relacionamento e de uma parceira.
Completando esse panorama, é o assunto abordado pelas expressões inquietas de Adèle: sua dificuldade em dividir Emma com o mundo, de estar em mais do que dois e se sentir constantemente ameaçada ao compartilhar o alvo de sua paixão. Essa sensação de deslocamento é piorada quando se acumula à de rejeição e de abandono. Como em qualquer relacionamento, essas questões trazem muita insegurança e dúvida, e mais uma vez, foi ótimo ver esse casal representado dessa forma, tocado pelas mesmas dificuldades de qualquer outro.
As cenas de sexo, além de extremamente lindas e excitantes, são interessantes por mostrarem toda a diversidade do ato sexual entre duas mulheres. Realmente educativo, eu diria. Há muito tesão entre as duas sim, assim como há muito amor, carinho, admiração, respeito, troca de ideias, etc. São um casal normal, com discussões, preocupações, inquietudes, ciúmes.
O que as diferencia não é o fato de serem duas mulheres, mas essa ligação que ambas sentem e que beira a obsessão. Lembra um pouco Adele H, de Truffaut. A dependência por aquele amor. Adèle vive intensamente. É apaixonada. Mas faz algo perigoso, deposita toda sua felicidade em sua parceira. A primeira cena em que ambas se cruzam na rua dá uma impressão de predestinação, de algo fadado a acontecer. O que apenas aumenta a possibilidade de leitura trágica da trama.
No fim das contas, o filme mostra, num belíssimo ritmo, o desenvolvimento dessa moça que se descobre enquanto personagem de uma história de amor avassaladora. Os sentimentos e as sensações são extremamente presentes. A dor e o prazer de Adèle são intensificados pela câmera e pela belíssima atuação da atriz.
O filme tem estréia prevista para o dia 6 de dezembro.
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