Eu acho que coisas como Comfortably Numb foram os últimos esforços meu e de Roger de conseguir trabalhar juntos.
—David Gilmour,
The Wall é, provavelmente, o álbum mais diversificado da carreira do Pink Floyd, misturando uma série de conceitos diferentes para as letras e com músicas que iam do puro hard rock ao mais emotivo do rock progressivo, passando por baladas e músicas instrumentais. Mais que isso, é uma obra cultuada por todas as suas três décadas de existência, tendo sido transformada até em filme – e não passa de uma história de vida, no caso, a do baixista Roger Waters.
A turnê In The Flesh, de 1977, foi a primeira em que a banda tocou em estádios gigantes, gerando um incidente terrivelmente memorável em Montreal, como dissemos no artigo anterior. Ao contrário do que muitos imaginam, Waters não era o único que se sentia deprimido em tocar para tanta gente sem controle, já que David Gilmour se recusou a participar da jam no fim do show, ficando no backstage. Roger machucou seu pé numa brincadeira meio exagerada nos bastidores e, após passar pelo hospital, foi direto ao hotel conversar com o produtor Bob Ezrin e com um psiquiatra, com quem dividiu seu sentimento de alienação com a turnê. Ele odiava tocar em estádios, e contou de como, às vezes, se sentia como se estivesse construindo um muro que separava ele de todo o público. Com Gilmour e Rick Wright na França gravando álbuns solo, e Nick Mason produzindo Green, de Steve Hillage, Waters se concentrou em produzir material para o novo álbum da banda.
O incidente da cuspida se tornou a base para um novo conceito, baseado na separação do público para com a banda no palco. Em julho de 1977 a banda se reuniu no Brittania Row (estúdio construído por eles), onde Waters apresentou tudo que tinha composto para os outros integrantes, que se resumiam a duas grandes novas ideias. A primeira é uma demo de 90 minutos com o título provisória de Bricks in the Wall, e a outra era o que viria a se tornar seu primeiro álbum solo, The Pros and Cons of Hitch Hiking.
Em 1976 e 1977 a banda se meteu em altas pelejas financeiras: a empresa responsável pela fortuna da banda se meteu em problemas sérios até quebrar, fazendo com que a urgência do novo álbum aumentasse, para a recuperação dos milhões perdidos. As 26 músicas previstas para o vindouro projeto o tornaria um disco duplo, e para produzi-lo foi chamado Bob Ezrin, que havia trabalho com Peter Gabriel. Entretanto, desde o começo, Waters fez questão de frisar a Ezrin que realmente estava no comando: “Você pode escrever o que quiser, só não espere levar algum crédito por isso”.
Ezrin, Waters e Gilmour pegaram tudo que o baixista havia composto e começaram a selecionar o que iria para o álbum e o que seria descartado. Waters e Ezrin trabalharam mais em cima do conceito da história, melhorando algumas pontas e aparando arestas e as coisas começaram a melhorar para o grupo, que voltava a se sentir um pouco mais entrosado já que, a partir daquele momento, o álbum realmente começava a tomar forma. O lado auto-biográfico da história foi transformado numa metáfora com o personagem Pink e, no lado musical, Gilmour cooperou com canções como Run Like Hell e Young Lust. As brigas entre Waters e o guitarrista ainda continuavam, mas a força de vontade de Ezrin se fez presente, conseguindo concicliar as ideias de ambos os integrantes.
A Gravação e as separações
Se nos dois anos anteriores a coisa andava mal entre os membros, durante as gravações de The Wall o caos tomou conta do clima entre os quatro. As sessões estavam numa agenda apertadíssima, e tudo era decidido de forma ditatorial por Waters e foi aí que as coisas entre ele e o guitarrista Richard Wright começavam a ficar feias. A banda raramente estava junta em estúdio, com cada um gravando suas sessões, com exceção de Waters e Gilmour que gravavam juntos. Wright estava preocupado que a entrada de Ezrin poderia influenciar a banda de forma negativa, e então ele pediu que participasse da produção e recebesse créditos por isso – antes, os álbuns eram creditados como “Produzido por Pink Floyd”, ou seja, toda a banda – e Waters topou. Mas pouco tempo depois a insatisfação dele e de Ezrin com os métodos do tecladista era grande, e logo ele foi confrontado, ameaçando largar tudo e fazer por sua conta à noite no estúdio. Logo depois Gilmour também se mostrou extremamente insatisfeito com a falta de foco de Wright.
Mais tarde, falando sobre a época da produção, Bob Ezrin comentou que “parecia que Roger queria fazer armadilhas para Wright falhar propositalmente, pois ele sofre de ansiedade, e precisa de calma e liberdade para criar”. O tecladista enfrentava sérios problemas pessoais, como um casamento falido e depressão. Além disso, seus filhos estavam começando a ir para a escola e ele estava perdendo essa fase deles, o que só o deixava mais deprimido. A coisa piorou mesmo quando o tempo passou e ele não havia composto nada para o álbum, muito menos tentado gravar algo.
A partir de então, não se sabe exatamente qual a sequência correta dos fatos. Roger decidiu dar um ultimato em Wright, e ele finalmente foi demitido da banda. O tecladista achou a decisão um absurdo, alegando a banda só iria gravar durante a primavera e o verão daquele ano, e não sabia porque a coisa estava tão apertada daquele jeito. Waters ficou furioso e alegou que Wright simplesmente não se dedicou à ajudar a banda a gravar o álbum – ele estava demitido.
David Gilmour soube mais tarde da decisão de Waters, por estar em Dublin, e tentou acalmar os nervos da banda. Ele foi o primeiro a dar algum suporte à Rick, mas não deixou de alertá-lo que isto também era fruto de sua falta de foco para com o álbum. No fim das contas, a produção continuou em larga escala até agosto de 1979, quando foi terminado. O resultado final era longo e precisou de alguns cortes – What Shall We Do Now foi completamente retirada (mas foi tocada na turnê). Empty Spaces foi editada e, o que se houve no álbum, é uma versão bem mais curta dela. Para finalizar, Hey You mudou de seu lugar original, indo para o começo do lado três do disco (ou primeira faixa do segundo CD).
A recepção da crítica foi bem variada, mas o álbum permanece, até hoje, entre os cinco mais vendidos da história dos EUA, e o single Another Brick in the Wall Part II ficou durante muito tempo em primeiro lugar em vários países da Europa. Nos EUA, The Wall é o álbum mais vendido da história do Pink Floyd.
Conceitos e Lirismo
Os temas do álbum são baseados, principalmente, em isolamento auto-imposto, simbolizado metaforicamente pelo muro do título. Todas as músicas e a história que suas letram formam são narrações da vida do protagonista, Pink, que também é uma metáfora para o próprio Roger Waters. O pai de Pink morreu durante sua infância (bem como o pai de Waters, na Segunda Guerra Mundial); ele sofre opressões de uma mãe super-protetora e de professores abusivos. Cada um desses traumas se tornam “mais um tijolo no muro”. Pink se torna uma estrela do rock, e as relações de seu casamento são envoltas de infidelidade, uso de drogas e acessos de violência, fazendo com que o casamento acabe em ruínas, e então, Pink finaliza seu muro, completando seu isolamento do contato humano
[veja as letras de The Wall traduzidas aqui]
Agora escondido por trás de seu muro, a crise de Pink aumenta gradativamente, culminando em uma performance ao vivo alucinado, na qual ele acredita ser um ditador fascista e que seus shows são como discursos neo-nazistas. Nestes shows ele pode mandar seus homens prenderem fãs que ele considera inúteis. Isso, claro, é fruto de todas as desavenças que Waters teve com seus fãs durante os dois anos anteriores, na já comentada turnê do álbum Animals, que causou altos níveis de depressão no baixista a ponto de ele querer criar seu próprio muro para isolamento.
Atormentado pela culpa, ele se coloca num julgamento interno, culminando na ordem de derrubar o muro, fazendo com que Pink se abra ao mundo exterior. O final do álbum fecha o ciclo aberto bem no começo: In the Flesh? começa com os dizeres: “…we came in?” e, Outside the Wall fecha com “Isn’t this where…”.
Mais do que as críticas e pensamentos de Roger Waters sobre sua própria vida e o mundo, as letras do álbum contêm várias referências ao ex-membro da banda, Syd Barrett, como por exemplo na música “Nobody Home”, que trata um pouco da condição do artista com a banda na turnê pelos EUA em 1967, como “wild, staring eyes“, “Hendrix perm” e “elastic bands keeping my shoes on“. A música seguinte, “Comfortably Numb”, metaforiza as experiências bizarras pelas quais Waters passou na turnê anterior, em que injetava uma série de relaxantes musculares para combater os efeitos da hepatite.
A Trilogia “Another Brick in the Wall”
Parte Um: Diferente das duas partes seguintes, a primeira é musicalmente muito calma, apenas acompanhada de um leve riff de guitarra. Na história, a percepção do mundo que Pink tem começa a se desvirtuar conforme ele se lembra da morte do pai anos antes, e dá os primeiros sinais da construção do muro.
Parte Dois: A música mais famosa do Pink Floyd é uma transição de The Happiest Days of Our Lives“, cuja marca registrada é o grito de Roger Waters, tão alto e libertador quanto o que ele fez anos atrás em Careful with That Axe, Eugene. A música é forte e com uma batida muito marcante, mas lembrada, principalmente, pelo coro de crianças cantando o refrão.
As crianças foram encontradas pelo engenheiro de som do álbum Nick Griffiths, na escola de música Islington Green School. A escola recebeu um pagamento de 1000 libras, e as crianças não receberam nenhum royalt pela gravação. Entretanto, com a nova lei de direitos autorais de 1996 na Inglaterra, os participantes se reuniram para receberem seus direitos. Ao contrário do que foi divulgado, o processo não foi contra a banda, mas sim contra a gravadora.
Na história, neste momento, após ter sido insultado por seu professor em frente aos outros alunos, Pink sonha que seus amiguinhos de escola se reúnem para destruírem e incinerarem a escola e matarem os professores.
Parte Três: O último capítulo da trilogia tem tons muito mais altos e agressivos que os dois anteriores, expressando a raiva de Pink com seu último tijolo. Musicalmente, claro, ela novamente se parece com as anteriores, mas expressa o sentimento de frustração do protagonista tanto na composição como nas letras: Pink decide finalizar seu muro como resultado da traição de sua esposa. Ele alega ter visto “a escrita no muro”, e conclui que não precisa de mais nada, considerando as pessoas de sua vida apenas como tijolos na parede.
Nos próximos artigos falaremos sobre a memorável e, ao mesmo tempo, terrível turnê de promoção do álbum The Wall e da música Comfortably Numb. Fiquem ligados!
Realmente é muito bom o Pink Floyd ser lembardo desse jeito.
É muito merecido o sucesso da banda.