AcervoCríticasLiteratura

Enquanto Deus não está olhando (ou O vômito adolescente como literatura contemporânea)

Compartilhe
Compartilhe

vocês são todos meio assim agora, pensam demais, se perdem demais…

Quando me deparei com este livro numa ida à livraria, fiquei surpreendido com o título, e é impossível você aí não ficar ao menos um pouco curioso para saber o que há dentro desse espaço no qual o onipresente e onisciente não olhou, não observou, não julgou porque não estava a olhar.

Comprei o livro pelo título, afirmo, mas o fato é que o livro, deve ser levado em conta, é muito mais do que o título pode suportar. Ao ver que o livro foi vencedor do Prêmio SESC de Literatura (um prêmio que vem reconhecendo e dando oportunidade a diversos autores iniciantes — e bons) decidi procurar algumas entrevista com a Débora Ferraz — a autora.

Vi uma na qual ela fala sobre o título, que não está atrelado de forma clara ao livro, mas, procurando bem, você o encontra em todas as frases. O título só surge nas meras 50 últimas páginas no romance, sendo uma parte que se você piscar você perder. Sobre o livro em si, teremos mais coisa a dizer.

Érica é uma artista plástica (mal sucedida) que trabalha numa agência de publicidade e acaba de perder o pai. Aliás, o pai foi na vida dela, algo tão presente, de boa e má maneira, que a marca profunda e imensuravelmente. O pai não gostava das obras dela, achava aquilo tudo bobagem.

Era um homem pragmático, com problemas com a bebida. A mãe, passiva, um irmão quase inexistente, com a qual a figura é uma total perda do espaço na narrativa, ele existe apenas quando ela, a personagem, nos faz alguma menção a ele.

O modo como a narrativa é escrita, alinear, de uma forma mais ou menos bem feito, já que a construção, em grande parte, é por flashbacks e não por uma narrativa construída apenas alienadamente, e esse modo como ela foi montada nos dá a impressão, nos transpassa isso, de toda a confusão mental em que ela, a Érica, se encontra. No amigo antigo que ela revisita e termina entrando em contato com o círculo de amizade dele, e se tornam os únicos companheiros para ela, que a ajudam, de certa forma, a seguir em frente.

“Enquanto Deus Não Está Olhando” é um livro sobre seguir em frente. No início da narrativa, você tem a pesada impressão de ser uma escrita mais amadora, mais simplória, que lapsos curtos de profundidade. Mas no decorrer do tempo, você consegue avaliar isso com algo maior, algo mais profundo, e percebe que há algo muito maior, filosófica e literariamente falando, de profundo na escrita de Débora Ferraz.

O que a mãe dela diz, da Érica, sobre a situação de um dos amigos mais próximos à personagem-narradora do livro, o Vinícius, talvez, resuma toda a dúvida, toda a frustração da personagem, da Érica: “VOCÊS SÃO TODOS MEIO ASSIM AGORA, PENSAM DEMAIS, SE PERDEM DEMAIS…” E não é esse o problema mais intrínseco e mais interno de toda a juventude: essa dúvida, esse receio, esse “pensar demais”?

É um livro que vale a pena. Não vai ser algo que revolucionará o tipo de literatura contemporânea brasileira, algo que vem apresentando grandes autores, as vezes, melhores até em abordar os problemas e devaneios de seu tempo do que alguns clássicos, porém o tipo de literatura (mais acessível, porém não mais simplória) que a Débora apresenta aqui, seja, no fim, o tipo de literatura de recém-saídos da adolescência vão se sentir próximos, a falta de escolha, a sensação de abandono e a solidão causada pela falta de um figura materna, uma personagem que é passiva, ela tem de ser empurrada para seguir a corrente, que, no fim, é a vida, a minha, a sua, a nossa.

Compartilhe

Comente!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Sugeridos

Questões sobre as maldades em “Os Campeões da Evolução”

A compreensão da maldade é complexa e envolve uma interação entre impulsos...

“A Vingança de Cinderela” não se destaca na moda de contos de fada de terror

Nos anos 2010, espalhou-se uma tendência que pode ser vista até hoje...

Os Fantasmas Ainda Se Divertem se apoia em Michael Keaton para funcionar

Foram 36 anos de especulação sobre uma continuação de “Os Fantasmas Se...

Gakusei desu Let’s School

O reitor da nossa antiga escola vai sair de férias pelo mundo...

Coringa: Delírio a Dois é deprimente, monótono e arrastado

Nos anos 1970, Monty Python escreveu um esquete chamado Adventures of Ralph...

Coisas estranhas em Unusual Findings

Findings Ambientado em alguma cidade não tão próspera no interior dos Estados...

Ricardo Aleixo lança seu novo livro: Tornei de Luanda um kota

Tornei de Luanda um kota fecha um ciclo iniciado, em 2015, com o...