Crítica: "Paraíso"

Ok, talvez Paraíso, segundo longa-metragem de ficção dirigido pela mexicana Mariana Chenillo, não esteja entre os melhores filmes do mês. Provavelmente, não estará entre os melhores do ano. Mas não é por isso ou por ser um filme nota 6,8 ou 7,0 que não mereça ser visto. Há muitas razões que fazem com que um…


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Ok, talvez Paraíso, segundo longa-metragem de ficção dirigido pela mexicana Mariana Chenillo, não esteja entre os melhores filmes do mês. Provavelmente, não estará entre os melhores do ano. Mas não é por isso ou por ser um filme nota 6,8 ou 7,0 que não mereça ser visto. Há muitas razões que fazem com que um filme mereça ser visto, e Paraíso tem algumas.
O filme trata de um casal de gordinhos que se chamam, mutuamente, de Gordo e Gorda. Trata-se do apelido carinhoso que cada um endereça ao outro. O Gordo é Alfredo (Andrés Almeida), a Gorda é Carmen (Daniela Rincón). Eles se dão bem e são felizes. Dançam em festas, transam e se beijam com frequência. E por que não? (A pergunta não é sem propósito na medida em que, em algum momento do filme, outros personagens se questionarão, de modo debochado, sobre a vida sexual do casal.) Tudo vai bem, até que o marido, o Gordo, é transferido no trabalho e deve ir morar na Cidade do México. Carmen, a Gorda, o acompanha e deverá construir uma nova vida.
A impressão inicial é que eles não são infelizes com o excesso de peso. E por que deveriam ser? Do ponto de vista midiático, talvez se espere que o gordo seja infeliz em sua condição de gordo. E por que se espera que isso aconteça? Esse é um ponto que pode trazer muita discussão, e uma das razões principais razões para assistir ao filme; justamente por debater essa questão que paira sobre os relacionamentos das pessoas que se encontram acima do peso (aqui a expressão serve ao cansativo politicamente correto), o que é raríssimo nas telas de Cinema e Tevê (todo mundo estranhamente tão em forma). A questão mais geral refere-se a estar fora dos padrões corretíssimos de beleza: se me dizem que o bonito é a magreza, o cabelo liso, os músculos no braço, o corpo inteiro sarado, como é ser completamente diferente disso e apreciar outros quesitos estéticos? Há espaço para tal?

Paraíso mostra que o gordo, nesse caso, só é infeliz a partir do momento em que alguém com função de espelho transforma “gordo” em sinônimo de feiura. Quando Gordo e Gorda são denominações afetivas dentro de um relacionamento harmônico, tudo está bem, há risos e diversão. Mas quando “gordo” ou “gorda” viram acusações, tudo muda. Quando se torna um estigma, tudo desanda. É o que acontece quando a Gorda, Carmen, vai a uma festa do trabalho do marido e escuta piadas a respeito de seu peso.
Spoiler a seguir (ou para ler depois de ver o filme)
Quando isso acontece, é a própria relação de Carmen com seu corpo, sua imagem, que muda. E é aí que mora uma segunda reflexão sobre o filme (e mais uma razão para vê-lo). Carmen, profundamente afetada por aprender que seu atributo de peso é risível, começa a operar esforços para emagrecer. Inicia então mudanças na rotina. Convida o marido, que, a princípio resiste, mas acaba topando. Ele começa a frequentar as reuniões de emagrecimento com Carmen, adere aos novos hábitos. E quando Carmen se dá conta, ele está realmente emagrecendo.
Os empenhos que são feitos para o emagrecimento levam a uma disparidade no casal. O que começa como uma tarefa a dois vira motivo para distanciamento emocional, que tem início quando Carmen se dá conta de que não consegue levar a cabo a tarefa que ela mesma propôs a ambos e que, além disso, não reconhece mais o marido, em seus agora razoáveis quilos de ex-gordo. Ele muda as roupas, planeja jogar calças jeans fora e ela se incomoda ao ver que talvez ele não engorde mais. Eram felizes e talvez soubessem, enquanto gordos.

O desequilíbrio entre Carmen e Alfredo é o que causa o distanciamento do casal, provocado pelas mudanças que acontecem em apenas um polo da relação. No caso de Carmen e Alfredo, essa mudança se dá pelo engendramento de uma imagem que não corresponde à imagem conhecida (o marido gordo passa a ser magro). Carmen não lida bem com a nova imagem de Alfredo, não consegue encaixá-la no antigo apelido. Não bastasse a imagem que muda, há uma traição rondando o ar. No entanto, a pergunta que fica é: para Carmen, a protagonista, qual pode ser considerada de fato a traição do marido? Beijar uma colega de trabalho ou emagrecer com eficácia e estabilidade? Um lance extraconjugal ou a mudança que Carmen não é capaz de acompanhar?
No aniversário de casamento, fica claro o que cada um deseja do outro: Carmen o presenteia com uma camisa social vários números acima de seu novo manequim, e ele a presenteia com um aparelho de ginástica. Carmen quer que ele volte a ser o Gordo de antes, ao passo que ele quer que ela emagreça efetivamente. Entretanto, nesse momento da troca de presentes, a diferença entre os dois aparece novamente: Alfredo deseja para ela o que ele acha que Carmen deseja para si, uma vez que foi ela quem trouxe a ideia do emagrecimento, quem o levou a dietas, exercícios, reuniões. Alfredo quer ajudá-la na tarefa árdua de emagrecer porque acha que esse é o objetivo dela. Ele quer o bem de Carmen, digamos assim. Mas Carmen, ao contrário, deseja para Alfredo o que ela deseja para ele: Carmen quer que Alfredo volte a se encaixar na imagem de antes, sem se importar se Alfredo gostou da nova imagem que construiu para si. Ela quer o bem dela mesma, digamos assim.
Num casal, a disparidade que se inicia e se constrói pode ser vivida como uma traição muito maior do que a traição efetiva do beijo na boca. A disparidade diz respeito a pesos e hábitos. Uma vez que um dos dois emagrece, no caso de Paraíso, o que resta depois? Ou o que se pode construir a partir de então? E é por essa reflexão necessária, atual e rara que o filme de Mariana Chenillo vale a pena ser visto, mesmo que não esteja entre os melhores filmes do ano.