Dessa vez não será em nome do pai, do filho e do espírito santo, nem de nenhum outro
homem, arquétipo ou figura masculina que a história vai girar. No espetáculo de Suzana Nascimento (que também assina a dramaturgia), “Em nome da mãe”, é finalmente outra a perspectiva. A peça, que fez temporada no Teatro Adolpho Bloch, no Rio, em agosto, e que ganhou sessões extras em setembro devido ao sucesso de público e à casa lotada, é efetivamente um trabalho emocionante, graças à entrega de Suzana à personagem Maria de Nazaré, mãe de Jesus.
Além de abordar todos os aspectos de conservadorismo e misoginia que insistentemente ainda desfilam sob nossos olhos – em seus formatos contemporâneos, em recauchutadas roupagens – nas notícias, nas manchetes, nas redes sociais, na vida acontecendo do nosso lado o tempo todo, além disso há um trânsito muito interessante que Suzana executa com destreza, ao passar, em algumas ocasiões instantaneamente, da personagem Maria a ela mesma Suzana, com suas características mineiras, com as histórias de sua família e as histórias culturais que compartilha com a plateia de forma bem-humorada, como é o caso do pão de Jesus.
Esse trânsito também confere leveza a um espetáculo que poderia ser muito denso e pesado, já que é inevitavelmente pesada a violência que atravessa a vida de todas as mulheres há tantos séculos. Não há como fugir ao peso e dar tratos à bola de modo leviano, mas saber misturar uma bossa agradavelmente mineira no jogo de cena enriquece a experiência e traz ao palco algum alívio, necessário para seguir adiante no monólogo. Especialmente para nós, mulheres, que iremos reconhecer a familiaridade daquilo que nos é mostrado com aquilo que vemos e vivemos. No espetáculo, o jogo entre o passado e o presente se materializa em algumas cenas inesperadas e divertidas, como a do telefone celular, em que a atriz, repentinamente, recebe uma chamada de sua mãe, mas que é ao mesmo tempo um diálogo com a atriz e com Maria de Nazaré. Ou quando há citações ao texto bíblico na inconfundível voz em off de Cid Moreira. São ainda mais interessantes os momentos em que, nesse trânsito de contextos temporais e culturais e das personagens assumidas por Suzana Nascimento, informações atuais nada fictícias (e, por isso mesmo, estarrecedoras) são compartilhadas com a plateia. Esse é o caso da famigerada legítima defesa da honra, tese que foi muito usada no Brasil até 2021, e que protegia de penas severas homens que cometessem feminicídios ou outras agressões contra mulheres, caso tais crimes supostamente se pautassem em seu sentimento de indignidade diante de qualquer ato que achassem reprováveis cometidos por suas esposas e que ferissem aquilo que entendessem como “sua honra”, essa abstração que talvez só os homens mesmo pudessem ter e esbanjar. Em termos corriqueiros, esse absurdo.
E como se não fosse o bastante, acompanhando o espetáculo, somos premiadas com a exposição “No princípio era a mulher”, no foyer do teatro, com belíssimos bordados em folhas de árvore de autoria também de Suzana Nascimento, trabalhos poéticos que dialogam com a peça em uma expressão de grande delicadeza. Sim, esperamos que, em nome da mãe, da filha, das netas, das professoras, das deputadas, das vereadoras, das presidentas, das amigas, das primas, o espetáculo ganhe novas temporadas, novas sessões, e que tenha vida longa, porque, sem sombra de dúvida, no princípio era a mulher e é preciso falar sobre isso.
Ficha técnica
Direção: Miwa Yanagizawa
Concepção, dramaturgia e atuação: Suzana Nascimento
a partir da obra de Erri de Luca
Tradução: Federico Puppi
Figurino: Desirée Bastos
Cenografia: Desirée Bastos e Jovanna Souza
Iluminação: Ana Luzia Molinari de Simoni e Hugo Mercier
Direção de movimento: Denise Stutz
Trilha sonora original: Federico Puppi
Participações especiais (trilha):
Cantoras: Rita Beneditto, Kacau Gomes, Mari Blue, Fernanda Santanna e Alexia Evellyn
Percussão: Marco Lobo
Voz da mãe (a própria): Irene Pereira do Nascimento
Direção de palco: Sabrina Savino
Operação de som e vídeo: Roberto Lucaro
Fotografias: Nil Caniné, Elisa Mendes e Júlio Ricardo
Vídeos: Elisa Mendes
Edição de vídeos para projeção: Almir Chiaratti – OKOTO Produções
Assessoria de imprensa: Paula Catunda e Catharina Rocha
Design gráfico: Raquel Alvarenga – Studio Janela Aberta
Mídias sociais e produção gráfica: Top na Mídia
Direção de produção: Alessandra Reis e Cristina Leite
Coordenação geral: SP Nascimento Produções
Produtoras associadas: AR27 Produções Artísticas Ltda e SP Nascimento Produções
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