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A peça ‘Deserto’, a poesia e o gol contra

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Há certas peças de teatro que mereceriam um momento de silêncio após sua conclusão. Deveria fazer parte da peça, aliás, um momento final incluído e necessário, como um corredor de transição que concede o tempo que cada um precisa pra se largar pensativa o quanto for até à volta as coisas corriqueiras do cumprimentar, do pedir o táxi, do explicar o caminho, do estar no mundo. A peça termina, você sai do teatro e entra em uma camada da vida de desligamento da realidade externa, em que se pode guardar a voz, os gestos e as palavras apenas para si. Esse foi o estado provocado em mim pelo espetáculo Deserto, com direção e dramaturgia original de Luiz Felipe Reis e atuação de Renato Livera.

Deserto propõe a encenação de fragmentos da vida e da obra do inesgotável escritor chileno Roberto Bolaño (1953-2003), sendo fruto de uma extensa pesquisa da obra do poeta e escritor. Eu, como leitora de Bolaño e tendo relido recentemente, por coincidência, o romance Amuleto, não podia deixar de assistir, e posso dizer que o espetáculo está à altura da capacidade narrativa e poética do autor: faz jus ao magnetismo de seu texto, faz jus à ode à poesia latino-americana que a protagonista de Amuleto tece (o que explica muita coisa do referido romance) e relembra e reforça e sublinha a importância de não nos esquecermos que temos essa unidade enquanto autoras e autores e leitoras e leitores, isto é, somos sulamericanos. E latino-americanos. Embora nos esqueçamos disso, especialmente nestas terras brasileiras.

A peça gira em torno da fase da vida do escritor em que tem o diagnóstico de uma doença hepática e passa a viver com ela, suas consequências e com a urgência do tempo: com o aceno da morte e a decadência das capacidades físicas, o personagem/autor precisa de mais para dedicar-se à escrita, especialmente à obra 2666, que não consegue terminar e que, mesmo assim, é publicada.

Um registro é importante aqui: o texto de 2666 é absolutamente impressionante e a dramaturgia de Deserto explora a questão dos feminicídios de Sonora, a cidade mexicana na fronteira com os Estados Unidos onde centenas de mulheres são mortas, violentadas e vítimas de grande violência, mistério que, entre outros, permeia o romance. O nome da peça tem a ver com esse cenário do deserto em que Sonora está, mas é possível compreendê-lo como uma referência ao evidente percurso solitário do poeta/escritor com sua poesia/textos e com a doença do final de sua vida, já que a experiência da doença é sempre absolutamente solitária e intraduzível. A urgência do tempo para estar com os filhos é também algo que atormenta o protagonista, e há uma belíssima cena ao final do espetáculo em que o personagem pega uma câmera portátil e grava um depoimento emocionado para o filho, recomendando que leia os poetas, deixando essa expressa orientação para os filhos que não verá crescer, a mais importante de todas as orientações, a principal.

Mas não há apenas esse momento de grande beleza: o espetáculo é composto, do início ao fim, de grandes momentos discursivos, em que a apologia da poesia e dos artistas latino-americanos são costurados com jogos que intercalam recursos audiovisuais usados de maneira bem original, como o momento da entrevista com Bolaño ou ainda, mais no início, quando, em conferência inicial em que o escritor está ausente, as lacunas na fala do apresentador se completam de modo humorado através de uma projeção atrás dele.

São muitos os bons momentos de Deserto e é impressionante o mergulho de Renato Livera no personagem que defende. O texto é de grande profundidade e, à guisa de conclusão, menciono a brihante comparação que o Bolaño de Rivera e Luiz Felipe Reis faz da poesia com o futebol, ao mencionar a indelicadeza que é fazer um gol em alguém que nunca viu, que não conhece, que nunca lhe fez mal, como é o caso do goleiro que não agarra o gol. Por outro lado, o gol contra, ele ressalva, é a subversão própria aos poetas. Roberto Bolaño foi um escritor genial e Deserto está à altura.


Ficha técnica

Direção e dramaturgia original: Luiz Felipe Reis

Baseado na obra de Roberto Bolaño

Atuação: Renato Livera

Direção assistente: Julia Lund

Interlocução dramatúrgica: José Roberto Jardim

Direção de movimento: Lavínia Bizzotto

Cenário: André Sanches e Débora Cancio

Criação de vídeo: Julio Parente

Assistente de vídeo e operação de vídeo e luz: Diego Ávila

Luz: Alessandro Boschini

Trilha sonora: Pedro Sodré e Luiz Felipe Reis

Figurino: Luiza Mitidieri

Design gráfico: Bruno Senise

Fotografia: Renato Pagliacci

Assessoria de imprensa: Ney Motta

Direção de produção: Sergio Saboya (Galharufa)

Produção executiva: Roberta Dias (Caroteno Produções)

Idealização e coprodução: Polifônica

Serviço

Local: Futuros – Arte e Tecnologia

Rua Dois de Dezembro, 63, Flamengo, Rio de Janeiro (próximo ao Metrô Largo do Machado)

Informações/tel.: (21) 3131-3060

Temporada: 02 de maio a 23 de junho de 2024, quinta à domingo, às 20h

Ingressos: R$ 60,00 (Inteira) | R$ 30,00 (Meia)

Lotação: 63 lugares, sendo 1 espaço para PCR, 1 assento para pessoa obesa e 1 assento reservado para acompanhante de PCD.

Duração aproximada: 80 minutos

Classificação indicativa: 16 anos

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