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“Amor e Sorte” enfrenta pandemia com arte

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Há mais de seis meses, quando estourou a pandemia de coronavírus e foi decretado isolamento – ou quarentena, se preferir –, todos ficamos apreensivos. Apreensivos pelas vidas que seriam perdidas, pelos planos cancelados ou pausados, pela maneira como todos teríamos de nos reinventar.

A indústria dos trabalhadores da cultura sofreu um grande baque, com teatros fechados e produções audiovisuais paradas. As redes de televisão abriram seus acervos e colocaram reprises na programação, pois novas gravações estavam impedidas. Mas estavam mesmo? Não necessariamente: em alguns casos específicos, era possível continuar gravando sem interromper o isolamento. E foi esse desafio que a série Amor e Sorte topou enfrentar.

O audiovisual e outra pandemia

Esta não é a primeira pandemia desde a invenção do cinema. Quando a gripe espanhola assolou o mundo, entre 1918 e 1920, o cinema já existia como entretenimento bastante popular, e também como veículo de informação. Esta pandemia anterior causou, sim, o fechamento dos cinemas e a paralisação de gravações, além de ter sido assunto de documentários e newsreels – breves filmes-reportagem – da época. Mas a semelhança acaba aí.

É curioso que haja tão poucas menções à pandemia de gripe espanhola no cinema e na televisão. Uma das poucas referências é encontrada no filme Papai Pernilongo, de 1919, numa breve cena em que a protagonista Mary Pickford espirra e uma multidão, incluindo algumas pessoas usando máscaras, se assusta e se espalha. É uma sequência curta, quase um detalhe que pode passar despercebido caso o espectador não conheça o contexto desta outra pandemia.

Repare nas pessoas usando máscaras em “Papai Pernilongo”, de 1919

Muitas hipóteses podem explicar a falta de filmes sobre gripe espanhola. A primeira, tecnológica, é que relativamente poucas pessoas podiam comprar equipamentos de filmagem no final da década de 1910. Hoje, quase todas as pessoas possuem smartphones com câmeras, ou seja, têm um equipamento completo de filmagem e edição no bolso. Mais do que isso: podem filmar, editar e publicar cenas do cotidiano muito rapidamente, e até mesmo transmitir tais cenas ao vivo.

Outra hipótese é psicológica. Apesar de ter sido devastadora – estimativas apontam entre 50 e 100 milhões de mortos – a pandemia foi pouco comentada nas décadas seguintes, e em geral só era mencionada quando se falava sobre algum parente vítima da gripe espanhola. O interesse pelo ocorrido só foi surgir no final do século, quando a globalização mostrou o impacto do vírus e, pela primeira vez, a tragédia em escala global foi considerada.

Entretanto, se não encontramos referências explícitas a esta pandemia no audiovisual, podemos encontrar ligações até mesmo nos filmes feitos quando os países ainda contavam seus mortos. Na década de 1920, cresceu o interesse por ocultismo e espiritualismo, em especial as técnicas para contatar pessoas mortas – o interesse era imenso, pois quase todo mundo havia perdido algum parente na guerra ou vítima de gripe espanhola – e este interesse foi explorado pelo cinema, em geral em forma de sátira. Na mesma época, em especial nos filmes europeus, multiplicaram-se menções a pragas medievais. Em Nosferatu, clássico de 1922, por exemplo, uma infestação de ratos traz uma praga – e um vampiro – à cidade.

Amor e Sorte: para refletir, para fazer sorrir

O slogan da série Amor e Sorte é “todos dizem eu te amo, mas é em momentos adversos que o amor é posto à prova”. O isolamento revelou problemas e intensificou tensões nos relacionamentos amorosos e familiares, inclusive gerando aumento no número de divórcios. Tratar de relações humanas no audiovisual é tão antigo quanto o próprio cinema, mas aqui o desafio era contornar as muitas dificuldades técnicas impostas pela distância.

A opção foi escolher famílias ou casais de atores que pudessem gravar os episódios sem interromper o isolamento social. Algumas participações especiais foram possíveis com a inserção de outros atores na cena através de aplicativos de conversa. A mesma estratégia foi usada na série Diário de um Confinado, protagonizada por Bruno Mazzeo, dirigida pela esposa de Bruno, Joana Jabace, com participação remota de Renata Sorrah e próxima de Débora Bloch, que mora no mesmo prédio que Bruno.

Para gravar Amor e Sorte, os atores recebiam orientações dos técnicos e diretores sobre o uso dos equipamentos e montagem dos cenários através de reuniões via computador – ao todo, eram mais de 20 pessoas atrás das webcams para garantir que o resultado fosse bacana. Criada por Jorge Furtado, a série tem roteiros assinados por grandes escritores como Adriana Falcão, Antônio Prata e Alexandre Machado.

O primeiro episódio, “Gilda e Lúcia”, traz Fernanda Montenegro como Gilda, idosa moradora do Rio de Janeiro, e Fernanda Torres como Lúcia, filha de Gilda e moradora de São Paulo. Lúcia leva Gilda a um sítio para um isolamento social forçado, já que havia sido informada pela tia de que a mãe não estava respeitando o isolamento social oficial. Mãe e filha são muito diferentes e os conflitos logo surgem, mas aos poucos elas ficam na mesma sintonia, tanto é que, quando Gilda vê na televisão que uma vacina está disponível, ela decide não contar para a filha para que a convivência delas não acabe – nem que para isso dona Gilda tenha que fazer algumas sabotagens.

O segundo episódio, “Linha de Raciocínio”, traz o casal Cadu (Lázaro Ramos) e Tabata (Taís Araujo) em uma discussão cheia de nuances logo antes de um panelaço. Com ela no ataque e ele mais na defensiva, a discussão altera altos e baixos, choro e risadas, questionamentos políticos e desespero pela pandemia. O episódio, cheio de ângulos inusitados de câmera, foi dirigido por Lázaro, cujo primeiro longa-metragem como diretor teve sua estreia adiada indefinidamente por conta da pandemia.

“Territórios”, o terceiro episódio, também focou em um casal em crise. Clara (Fabiula Nascimento) e Francisco (Emílio Dantas) confessaram que traíram um ao outro e por isso decidiram se separar. Mas, no dia seguinte à decisão, a quarentena é decretada e, para piorar, Clara começa a apresentar sintomas de COVID. Forçados a dividir o apartamento, inclusive com plásticos demarcando a área de cada um, eles reavaliam o que odeiam e o que amam um no outro, enquanto a trilha sonora de Gilberto Gil dá o tom de todo o caos.

Por último, em “A Beleza Salvará o Mundo”, temos um casal vivendo uma situação oposta às duas anteriores: a atriz Teresa (Luisa Arraes) e o engenheiro químico e aspirante a cineasta Manoel (Caio Blat) se conhecem e passam um final de semana juntos, desconectados de tudo. Na segunda-feira, descobrem que precisam permanecer juntos, trancados no apartamento dela, por causa da quarentena. Como todos os seus projetos foram cancelados, ela aceita fazer um filme com ele. Com uma câmera na mão – literalmente – e uma ideia na cabeça, eles mostram que arte também cura.

Embora os atores estivessem encenando histórias fictícias, é possível notar um desnudamento, afinal, estes mesmos atores estavam usando suas casas como cenários e estavam trabalhando em meio a um contexto, ainda muito presente, de incertezas e medos.

Um grande problema que acomete Amor e Sorte – e outras séries da Globo, como a divertida Cine Holliúdy – é o formato narrativo em que tudo se resolve rapidamente no terceiro ato. Os episódios da série são bastante curtos, e aumentar sua duração e complexidade não necessariamente acarretaria em mais dificuldades de produção.

Fernanda Montenegro definiu como um estranho presente a oportunidade de filmar com toda a família neste momento ímpar – seus dois netos ficaram atrás das câmeras. Já Fabiula Nascimento destacou que, ao ter de realizar as funções de outros membros da equipe, ela teve um apreço renovado pelos trabalhadores de trás das câmeras. Definida como “poesia audiovisual” por um usuário da internet, a série certamente impactou a vida de todos os envolvidos e conseguiu arrancar sorrisos do público, servindo ao mesmo tempo para reflexão e distração.

O fato de a série Amor e Sorte poder ser feita pode dar um recado errado: que está na hora de todas as atividades voltarem, inclusive a indústria do entretenimento. Não é essa a lição. Em frente e detrás das câmeras a série mostrou que este contexto que vivemos não é fácil para ninguém, mas o mais importante agora é resiliência. Precisamos fazer não o máximo, não o que fazíamos antes, mas sim fazer o possível. Fazer o possível já é suficiente neste momento de crise. E o possível pode ser inspirador.

Nota: Bom (3 de 5 estrelas)

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