Daniel Galera construiu sua base literária editando e publicando textos em portais e fanzines eletrônicos entre 1997 e 2001. Traduziu outros tantos e logo chegou a publicar seus textos em uma grande editora, a Companhia das Letras. Já resenhamos um de seus trabalhos mais conhecidos, o roteiro da HQ Cachalote, com a arte do filho do Laerte, Rafael Coutinho.
Barba ensopada de Sangue
È o seu quarto romance, com o qual foi premiado com o 3.º lugar na categoria Romance no Jabuti 2013; o livro ganhou tradução para o inglês, Blood-Drenched Beard: A Novel (Penguin, 2015), bem recebido pela crítica lá fora. O autor escolheu um título que instiga a curiosidade, mas seu conteúdo vai muito além, pois não saímos ilesos por sua leitura
O livro narra a história de um professor de educação física que busca refúgio em Garopaba, um pequeno balneário de Santa Catarina, após a morte do pai. O protagonista se afasta da relação conturbada com os outros membros da família e mergulha em um isolamento geográfico e psicológico. Ao mesmo tempo, ele empreende a busca pela verdade no caso da morte do avô, o misterioso Gaudério, que teria sido assassinado décadas antes na mesma Garopaba, na época apenas uma vila de pescadores.
Sempre acompanhado por Beta, cadela do falecido pai, o professor esquadrinha as lacunas do pouco que lhe é revelado, a contragosto, pelos moradores mais antigos da cidade. Portador de uma condição neurológica congênita, a prosopagnosia (também conhecida como cegueira facial), que o obriga a interagir com as outras pessoas de modo peculiar, o professor estabelece relações com alguns moradores: uma garçonete e seu filho pequeno, os alunos da natação, um budista histriônico, a secretária de uma agência turística de passeios. Aos poucos, ele vai reunindo as peças que talvez lhe permitam entender melhor a própria história.
Análise
Daniel Galera desenvolve uma narrativa com um ritmo incrível, alternando descrições ricas em sutileza e detalhamento com diálogos ágeis e bem ligados, que dão vida a um elenco de personagens inesquecíveis. De início, com o título, podemos pensar que é uma história violenta, mas podem se tranquilizar, embora tenha uma relação entre narrativa e título, nada que iniba os leitores avessos a estilos mais violentos.
A história é simplesmente bem amarrada, em meio a um mistério familiar, entramos numa jornada pessoal deste protagonista, onde encontramos aspectos da escrita de Galera, como a construção da identidade e as dificuldade de enfrentar o seu eu ou a necessidade inconfessa de uma reparação talvez inviável.
A introdução já captura nossa curiosidade, pela maneira que foi realizada, com o autor escrevendo sobre o que conhece, desde o cenário em si, quanto a valorização da sua linguagem cinematográfica, detalhistas, tal qual o protagonista reconhece seus semelhantes.
Os diálogos são bem construídos e possuem uma peculiar diferença, não possuem aspas ou travessões. Surgem soando como se fossem reais, de acordo com o local e com cada personagem. Apresentando singularidades linguisticas, como o uso do ‘tu’ na terceira pessoa do singular.
A jornada de Barba ensopada de sangue desenvolve em um estilo real e robusto três personagens: o protagonista e sua incapacidade de lembrar de rostos, a cadela Beta e sua relação comovente com o protagonista e a cidade de Garopaba em Santa Catarina.
Ao abordar questões presentes no nosso dia a dia, Galera vivencia situações reais com pessoas e todas as angústias e questionamentos atuais, de assuntos religiosos a políticos, do modo de vida da capital ou dos grandes centros urbanos à maneira de ver a vida das pequenas cidades, dos nossos interiores.
É uma narrativa realista, bem desenvolvida, que se afasta da subjetividade de outros romances do estilo; um homem trilha uma jornada difícil em busca ou em fuga de si mesmo pelo rancor do passado, por seus conflitos, pela frustração… Tudo isso são molas que estão substancialmente em todo o texto, com um trisco de felicidade em raros momentos para a existência tão malograda do protagonista.
Denso, é um livro que atiça nossas angústias, Barba Ensopada de Sangue traz camadas e mais camadas de autodescoberta, que poderiam nem ter sido tantas, mas que, por tratar de um personagem peculiarmente sem vaidades que atormentado dá a si mesmo a desesperança como um único caminho para um fim tão marcante e comovente. Recomendo a leitura.