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Billdog 2, com atuação e direção de Gustavo Rodrigues, é um acontecimento

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‘Billdog 2 – O monstro dentro dele’ pode ser descrito, a princípio, com apenas uma palavra: genial. E se seguir de uma sugestão sucinta: vá assistir, porque o trabalho de ator, por si só, já vale a visita. Todavia, como uma resenha não se faz com duas linhas nem três, passemos aos motivos e desdobramentos.

Billdog 2 é uma adaptação de Gustavo Rodrigues do texto do inglês Joe Bone e dá continuidade à peça Billdog (2012). Gustavo, que traduz o texto, não só atua como o dirige, aqui em conjunto com Joe Bone, e implementa um trabalho de palco hercúleo. Ele é capaz de, sozinho, encarnar todos os mais de 40 personagens, com características, vozes e idiossincrasias diferentes, além de encarnar também o cenário e a sonoplastia, auxiliado, neste último caso, por Tauã de Lorena, que assina a direção musical, além de acompanhá-lo durante todo o espetáculo do cantinho do palco, oferecendo seus acordes às situações inesperadas que acontecem com os personagens e o protagonista, Billdog.

A trama, em si, não tem nada de mais, nada que fuja das clássicas histórias em quadrinhos em que um gângster charmoso, em conflito ético, matador com princípios, misto de herói e vilão de si mesmo, não contenha. Mas o fato de estarmos no teatro, e de haver apenas um ator encarnando tudo isso, faz absolutamente toda a diferença. A forma, neste caso, alça o conteúdo às alturas, pois Gustavo Rodrigues consegue construir os personagens de modo a emprestar vida e singularidade como também conferir uma espécie de silhueta – ou assinatura – a cada um deles, e o faz muitíssimo bem.

O modo caricato de alguns (ou de vários) e a forma como ele empresta voz e corpo à cidade e aos lugares pelos quais os personagens transitam fazem com que imaginemos absolutamente tudo e, além disso, nos remetem às histórias em quadrinhos. Diversas cenas dão a sensação de que estamos de fato folheando as páginas de uma hq, e alguns detalhes remetem a cada quadrinho de uma página. A preocupação com esses detalhes evoca a linguagem do quadrinista, ainda que estejamos lidando com dramaturgia pura. São, por exemplo, cenas em que um dos personagens está caminhando de volta pra casa, ou está se dirigindo a um encontro, acha-se em trânsito entre um lugar e outro e sendo martirizado por ideias, emoções, raciocínios.

É interessantíssimo ver como os detalhes que entram na composição dessas cenas acabam por fazer com que visualizemos que personagem está em foco, apesar de o ator não fazer nenhuma mudança na vestimenta, nem ter usado praticamente nenhum objeto palpável como recurso. Sentimos que um personagem está caminhando pensativo pela rua, emaranhado em questões internas, pelos carros ou ambulâncias que passam, ou pelas abordagens de outros transeuntes ou de pessoas que exercem sua atividade comercial, qualquer que seja ela, na rua. Vemos os transeuntes, vemos os carros, vemos a rua.  Sabemos que Billdog mora no 2º andar de um prédio pela forma como o personagem “sobe as escadas”, ou que estamos na fronteira de um espaço da cidade contaminado por lixo atômico pelo personagem que “varre a rua”, e por aí vai. Vemos as escadas, vemos a vassoura, vemos até mesmo o lixo atômico. São muitas as cenas e os momentos que a peça oferece ao público para que nos refestelemos em ínfimos detalhes (e às vezes nem tão ínfimos) de personagens, objetos, interações. E isso é um quase um jogo de adivinhação entre plateia e artista, em que somos lançados implicitamente ao desafio de adivinhar do que se trata e de quem se trata nessa ou naquela cena.

O teatro pobre de Gustavo Rodrigues – no sentido defendido por Grotowski – me remeteu ao já clássico A descoberta das Américas, em que Júlio Adrião promove um trabalho de ator igualmente hercúleo. O que dá graça a muitos momentos de ambos os espetáculos, apesar das diferenças de temática, são exatamente as minúcias dos movimentos, barulhos e, por que não?, neuroses em que estamos imersos sem perceber e que, no espetáculo, vêm à tona quando as podemos enxergar em alguns dos personagens. Com Billdog 2 fica claro que o ator é um trabalhador. E que o que vemos em pouco mais de uma hora de espetáculo é resultado de muitíssimo trabalho. O ator é um operário da cena, da arte. E Billdog 2, em seu conjunto, é quase uma coreografia.

Além disso, a peça traz diversos momentos hilários, como uma consulta psiquiátrica, algumas conversas telefônicas e as recordações do protagonista (e a solução dramatúrgica/corporal encontrada para elas). Um momento interessantíssimo da peça (não será spoiler demais mencioná-lo) é o show de rock que se imiscui na trama de modo inusitado e que faz parecer que a vontade sincera de ator e músicos é de estender esse momento. Mas isso é apenas especulação (ou projeção, da minha parte).

A iluminação assinada por Aurélio de Simoni também merece uma menção especialíssima, pois se insere com parcimônia em algumas cenas promovendo certa sinestesia que completa o trabalho de Gustavo Rodrigues e Tauã de Lorena, sobretudo no meio do sonho alucinatório que Billdog vivencia e no mergulho quase sem volta de um dos personagens em lixo radioativo.

Algumas pequeníssimas coisas mostram, no entanto, certo gap temporal e, digamos, também um gap cultural, uma vez que o texto não é brasileiro. No caso do pequeno aspecto anacrônico da peça, a presença de uma “secretária eletrônica” causa um misto de graça e estranhamento. O objeto é algo que já não existe mais em nossas vidas cotidianas e talvez um celular pudesse entrar na história, substituindo a secretária eletrônica, em uma adaptação futura, já que hoje em dia os recados são deixados por whatsapp e afins. Nesse ponto, a vantagem do teatro sobre o cinema diz respeito à sua qualidade dinâmica, ao fato de que, a depender da encenação ou da adaptação, alguns detalhes podem ser reformulados se isso fizer sentido, ao passo que o filme cristaliza-se, o que, ao fim e ao cabo, não deixa de ser o retrato de uma época.

Refletindo sobre o anacronismo, penso que uma secretária eletrônica não me incomodaria em um filme, nem nenhum outro aspecto que denotasse um tempo passado. Minha reação em relação a aspectos como a secretária eletrônica em Billdog 2 me fez pensar que isso talvez só tenha me despertado um ligeiro estranhamento pela característica formal da peça. O anacronismo aqui é mais uma pergunta do que uma afirmação. E não deixam de ser estranhas, também, algumas falas e nomes quando ocorre uma adaptação de texto estrangeiro. Mas isso tudo não passa de matéria pra debate e certo preciosismo que não afeta em nada a qualidade do espetáculo.

E por falar em cinema e pra finalizar essas bem mais que duas ou três linhas, Billdog 2, em sua mistura de dramaturgia, cinema e hq, faz lembrar alguns personagens já clássicos da sétima arte. Além de a peça me evocar a maravilhosa A Descoberta das Américas, lembrei também do personagem Carlito, de Al Pacino, no filme O pagamento final/Carlito’s Way (Brian de Palma, 1993), em que Carlito, o protagonista, sai da prisão buscando um rumo diferente em sua vida, envolto em conflitos éticos. O crime, porém, e seu passado tortuoso insistem em persegui-lo e chamá-lo de volta, tornando-se incontornáveis. Em Billdog 2 é o coração amolecido ou talvez exausto do gângster que evocou não apenas Carlito, mas também o personagem Will Munny, de Clint Eastwood, em Os Imperdoáveis (Clint Eastwood, 1992). Ambos foram conhecidos, nas localidades em que atuaram, por suas habilidades no mundo do crime, reconhecidos como verdadeiras lendas e admirados por muitos. Agora, contudo, todos estão em outra. A hesitação e certo cansaço que permeiam Billdog durante toda a aventura a que assistimos, o conforto que encontra quando está em casa – essa espécie de refúgio – o aproxima desses personagens memoráveis do mundo cinematográfico.

Chego à conclusão, enfim, que é possível falar muito mais sobre Billdog 2 e que seria um erro crasso usar apenas duas ou três linhas, um adjetivo e uma recomendação sucinta para falar da peça. É esse campo aberto ao debate e às reflexões, é essa vontade de pensar a respeito do que o espetáculo nos traz, é tudo isso o que torna uma obra realmente valiosa. Billdog 2, em suma, é um acontecimento.

Cotação: Épico (5 de 5 estrelas)

Ficha técnica

Texto e concepção: Joe Bone
Direção: Gustavo Rodrigues e Joe Bone
Supervisão artística:  Guilherme Leme Garcia
Elenco: Gustavo Rodrigues (Ator) e Tauã de Lorena (Músico)
Composição de trilha sonora:  Ben Roe
Direção musical: Tauã de Lorena
Iluminação: Aurélio de Simone
Figurino: Reinaldo Patrício
Preparação corporal:   Brisa Caleri
Programação visual:  Marcus Clausen
Fotos:  Guarim de Lorena
Operador de luz:  Rodrigo Lopes
Convidado especial:  Guiga Fonseca
Produção executiva:  Luan Victor
Direção de produção:  Monique Franco
Idealização e realização: Gustavo Rodrigues/Franco Produções Artísticas
Fotos: Guarim de Lorena

Serviço

Temporada: 3 de janeiro a 23 de fevereiro de 2020.
Dias e horários: De quarta a domingo, às 19h30.
Local: CCBB Rio (Rua Primeiro de Março, 66 – Centro) – Teatro III
Informações: (21) 3808-2020.
Lotação: 86 lugares.
Ingressos: R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia).
Venda de ingressos: De quarta a segunda, das 9h às 21h, na bilheteria do CCBB e pelo site: www.eventim.com.br
Classificação: 18 anos. Duração: 65 min.

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