Em 2010, foi lançada postumamente 2666, obra monumental do escritor chileno Roberto Bolaño, dividida em 5 partes. Em uma delas, o autor narra as diversas mortes de mulheres ocorridas em uma cidade do México, fazendo referência à Ciudad Juarez, situada na fronteira com El Paso, e que, em 1993, contabilizou uma série de mortes sem punição.
Trata-se de uma sucessão de descrições literárias das circunstâncias das mortes e dos desaparecimentos de milhares de mulheres, levando em conta suas ocupações, suas vidas e famílias, além das investigações, sempre incompletas, relacionadas a tais crimes. É exatamente sobre esses múltiplos desaparecimentos que a peça Bonecas Quebradas, em temporada no SESC Copacabana, se debruça, trazendo uma denúncia importante em relação à impunidade, à gratuidade e talvez à naturalização dos crimes perpetrados contra mulheres.
No palco, Ilea Ferraz, Lígia Tourinho e Luciana Mitkiewicz alternam vozes e personagens que apontam as condições de vulnerabilidade em que se encontram as mulheres e suas famílias, e o estado de ausência de soluções para essa aberração que se constitui num conjunto interminável de crimes que não parecem merecer a devida atenção das autoridades mexicanas. Como tem sido frequente encontrar, o que aparece mais uma vez (e a peça o assinala) é a ambiguidade do status das vítimas, que, em muitas situações, se tornam culpadas, de algum modo co-responsáveis pelos crimes a que foram submetidas.
O início da peça chama atenção: a plateia é dividida em grupos, que entram sucessivamente, e percorrem um itinerário onde encontram as atrizes lhes explicando as circunstâncias de alguns desaparecimentos. Depois, chega-se ao palco, coberto de um material que simula areia do deserto, com panos e tecidos brancos pendurados ao fundo, onde serão projetadas algumas imagens e filmes que falam sobre a violência contra as mulheres. As cadeiras são então dispostas em formato de L, onde os espectadores irão se sentar. Bonecas brancas, de pano, sem rosto ou características singulares, são penduradas sobre o palco de areia, compondo um quadro que remete aos corpos e ossadas de mulheres enterradas no deserto que circunda a região das mortes.
Esse cenário, bastante interessante e muito original, assinado por Rodrigo Cohen, nos faz pensar em duas representações: a do deserto como lugar geográfico, onde se dão as mortes ou seus enterros, mas também o lugar de ausência de vida, que não produz eco e onde não há proteção à integridade humana. Em suma, um lugar de total abandono. As bonecas penduradas são todas brancas, como se nada as distinguisse entre si, como se não houvesse marcas idiossincráticas de suas vidas anteriores aos crimes que sofreram, e aqui se tornam absolutamente iguais, unidas pelas mortes degradantes. Remetem também a fantasmas, que pairam sobre o deserto, como sombras irrecuperáveis.
A dramaturgia compartilhada de João das Neves, Verônica Fabrini, Isa Kopelman e as próprias Luciana e Lígia mescla algumas partes musicais, espécies de esquetes e trechos de histórias envolvendo personagens que sofreram violência. Traz ótimos momentos, em especial os que se referem aos personagens específicos que compõem as pequenas tramas que pontuam o espetáculo. É o caso do momento do desaparecimento de uma moça adolescente e a agonia de sua mãe que espera sua chegada, endereçando-se enfim à delegacia, onde é obrigada a responder a inúmeras questões que se mostram absolutamente sem sentido. Também é o caso da cena em que a mesma personagem está trabalhando na casa das patroas, e sua dor, estampada em seu rosto infeliz, torna-se um incômodo contraste face à festa que acontecerá em breve e que não deve ter máculas.
A direção musical de Silas Oliveira também ajuda a compor esses momentos, conferindo impacto e beleza a todas as cenas em que as atrizes encenam as peças musicais.
No entanto, talvez tenha havido certo excesso de fragmentação na dramaturgia proposta. Explico: a ausência de linearidade e a característica fragmentária e performática de uma obra não são problemas em si mesmos. Em Bonecas Quebradas, especificamente, isso até pode ter um sentido interessante, dado que, como o próprio nome diz, ‘quebradas’, já remete à fragmentação gratuita e extremamente violenta dos corpos das mulheres (mãos sem dedos, rostos sem mandíbula), algo que, além de tudo, transborda para além do corpo e se estende devastadoramente para famílias e vidas inteiras. No entanto, apesar de encontrarmos um sentido para a dramaturgia fragmentada, talvez a transposição de tal característica para a peça não tenha funcionado tão bem, tornando o espetáculo um pouco atordoante em alguns momentos. Eram muitas coisas para ver e pensar ao mesmo tempo, músicas, movimentos, projeções de imagens, atuações concomitantes, falas sobrepostas, que, ainda que sem perder o caráter necessário de denúncia, não lograram obter uma ordem harmônica.
Ficha Técnica
ENCENAÇÃO: Verônica Fabrini
DRAMATURGIA DE PROCESSO: Isa Kopelman, Lígia Tourinho, Luciana Mitkiewicz e Verônica Fabrini
DRAMATURGO CONVIDADO: João das Neves
CONSULTORIA TEÓRICA: Ileana Diéguez
ELENCO: Ilea Ferraz, Lígia Tourinho e Luciana Mitkiewicz
DIREÇÃO MUSICAL: Silas Oliveira
ILUMINAÇÃO: Bruno Garcia
CRIAÇÃO DE VÍDEOS: Júlio Matos e Coraci Ruiz (Laboratório Cisco)
CENÁRIO E FIGURINOS: Rodrigo Cohen
PREPARAÇÃO VOCAL: Flavio Lauria
DIREÇÃO TÉCNICA: RGB Brasil
OPERAÇÃO DE VÍDEO E SOM: Alex Guimarães
OPERAÇÃO DE LUZ: Alexandre Greco
ASSISTENTE DE CENOGRAFIA: Érico Damineli
CENOTÉCNICO: Basquiat Rezende
ASSISTENTE DE FIGURINOS: Silvana Nascimento
EQUIPE DE COSTURA: Adelvane Neia, Maria do Carmo Bianchi, Nilton Machado e Silvana Modelli
FOTOS DE PROCESSO: Maycon Soldan
FOTOS DE CENA: Maycon Soldan e Patrícia Cividanes
IDEALIZAÇÃO DE PROJETO E DIREÇÃO DE PRODUÇÃO: Lígia Tourinho e Luciana Mitkiewicz
REALIZAÇÃO: Bonecas Quebradas Teatro
ASSESSORIA DE IMPRENSA: Lu Nabuco Assessoria em Comunicação
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